quinta-feira, 9 de maio de 2013

OS PENSAMENTOS ZERO-DIMENSIONAL E LINEAR

Certamente toda nação sofre deste mesmo problema. Em maior e menor grau, em áreas similares ou diferentes, populações do mundo todo e também pessoas de todas as redes sociais exibem este tipo de comportamento. Porém, como residi quase a vida inteira no Brasil, me atenho a falar neste texto apenas da pátria mãe, inclusive de uma das poucas populações a quem este idioma é acessível.

O objetivo deste texto é alertar que o modo de pensar da sociedade é deficiente. E que isso necessita ser corrigido para suprir a demanda da própria sociedade por direitos humanos, dignidade e respeito à liberdade. Qual é então o problema, a deficiência?

É ao mesmo tempo mais cansativo e mais didático iniciar pelas definições. Como o entendimento é mais importante, é com definições que prossigo. Os  conceitos  mais importantes que precisaremos são  os de sistema, função e dimensão. Comecemos antes pela base (de toda a matemática  moderna). Será rápido. Um conjunto é  uma  coleção, família ou grupo de objetos, elementos ou coisas. Os elementos de um conjunto podem eles mesmos serem outros conjuntos  (mas leia sobre o paradoxo de Russel). Um sistema é um conjunto de elementos e de relações que esses elementos mantém entre si. Um sistema é qualquer grupo de objetos que exercem influência entre si. Um sistema pode ser o seu corpo, o sistema solar, um motor de carro, o universo, uma pedra, uma família, um livro, uma frase... A melhor maneira de detectar um sistema é notar que ele é "divisível" e muda com o tempo. Por exemplo, uma sensação de toque não constitui um sistema, mas uma mão e uma perna sim. Estamos acostumados a pensar em sistemas de forma muito simplista, por exemplo, a rede de telefonia brasileira constitui um sistema complexo, e no entanto no nosso dia a dia pensamos nela como se ela se resumisse apenas ao celular que liga e ao celular que recebe a ligação. Sequer pensamos que o celular é um sistema complicado de muitas peças eletrônicas com vários "cérebros" robóticos e diferentes linguagens de programação embutidas. Chamamos a imagem de um sistema que formamos em nossa cabeça de modelo. Por exemplo, se um telefone celular é um sistema, nosso modelo de um telefone celular é um bloco de plástico com uma tela LCD que emite e recebe sons. E no entanto sabemos que um telefone celular é muito mais do que isso, mesmo que não saibamos exatamente o quê. De uma forma ainda mais simples, um sistema é o que realmente é e um modelo é o que achamos que é.

Figura 1. Um sistema é um conjunto de partes de relacionadas, e um modelo é uma simplificação do sistema que formamos em nossas mentes.

Além das definições de sistema e de modelo, precisamos definir as relações e algumas formas de como elas podem se dar. Relações entre elementos de um sistema são interações, influências, trocas de energia ou de informação entre elementos que podem ou não alterar o estado desses elementos. Existem muitos sistemas que são estudados tanto por cientistas quanto por não cientistas, mesmo que o estudioso não classifique o objeto de estudo como sistema. Por conseguinte, existem vários tipos de relações diferentes. Historiadores estudam relações de poder, cobiça, patriotismo etc. Geógrafos estudam relações econômico-sociais e geológico-sociais, por exemplo. Físicos tendem a estudar quase que exclusivamente relações do tipo funções. Uma função é como um mapa. Assim como um mapa leva pontos no papel para localidades geográficas reais, uma função leva elementos de um conjunto para elementos em outro conjunto. E assim como uma mesma localidade geográfica real não pode corresponder a dois pontos diferentes no mapa, um mesmo elemento no outro conjunto não pode corresponder a dois elementos distintos no um.

Figura 2. Esquerda. N é um conjunto, constituído por todos os números naturais. R é o conjunto dos números reais e pode ser representado gemoetricamente como uma reta (a reta R). Se pegarmos duas cópias de R, podemos formar pares de coordenadas das duas retas. O conjunto de todos os pares ordenados assim formados é chamado ou R × R e pode ser representado geometricamente como um plano ilimitado.
Direita. f(x) e g(x) são funções, o que é o mesmo que dizer que elas são mapas que levam pontos de X a Y, enquanto que X e Y são retas reais. O gráfico dessas funções pode ser visualizado no plano  X × Y. Os mapas f(x) e g(x) são unidimensionais, mas logo abaixo está representado um mapa formado pela combinação das duas funções, representado no espaço X × Y × R. Este exemplo ilustra como se pode pensar em funções como mapas, neste caso as funções formam o mapa de uma superfície que pode representar um vale.
Um grau  de liberdade é uma unidade que representa escolha, e é uma característica de elementos, objetos ou relações. Ele representa uma característica de um objeto que pode ser escolhida,  determinada  ou definida. Por  exemplo, definimos um círculo lançando  mão de 1 grau de liberdade, pois todas  as suas propriedades dependem  apenas do raio. Um retângulo necessita de 2 graus de liberdade, um  para cada  lado, visto  que é formado de 2 pares  de lados idênticos. Um paralelepípedo necessita de 3 graus de liberdade (um para cada quarteto de lados idênticos), e assim por diante. Um espaço é (geralmente) um  conjunto de "pontos" ou "localidades" junto com uma relação de distância ou proximidade entre  esses pontos. Por exemplo, o  espaço sideral  é o espaço que habitamos  e  nele utilizamos normalmente a distância euclidiana (ou seja,  medimos distâncias com réguas). Finalmente, dimensão é o número de graus de liberdade que precisamos para definir uma localidade  ou um ponto num determinado espaço. Não, melhor ainda: dimensão é a quantidade de escolhas que temos ao definir  qualquer coisa em seu contexto. Por exemplo, o universo visível é de dimensão 3, pois precisamos de 3 coordenadas  para localizarmos qualquer objeto nele. A superfície terrestre é de  dimensão 2, pois precisamos apenas de 2 coordenadas (ou  graus de liberdade), latitude e longitude, para localizarmos um objeto sobre  ela (vide  GPS). Um fio de cabelo ou  uma linha reta para nós possui dimensão 1, pois lhes medimos  apenas o comprimento. O conjunto A = {secador; pente; barbeador; escova; xampu; sabonete} e a relação "objeto pessoal de higiene" constituem um espaço de dimensão 1, pois definem a escolha de um único elemento de A. Já o conjunto B = {0; 1; 2; 3; 4; ...} junto com a relação "pares de coordenadas" (ex.: (0,0),  (1,3), (10, 37) ... ) pode tanto ser encarado como um espaço de 2 dimensões, quanto de 1 dimensão.

Munidos dessas definições podemos abordar o cerne do problema. Se existem formulações e/ou formalizações de tipos de conhecimento,  desconheço, mas conjecturo a ausência de conflitos com  as principais teorias vigentes da cognição. Devo advertir que utilizo o conceito de "conhecimento" muito liberalmente, o que creio não ferir o argumento em qualquer ponto. Existem certas formas distintas pelas quais podemos adquirir e principalmente armazenar e acessar conhecimento. Existe o conhecimento que apenas "memorizamos", e existe aquele que deduzimos  sempre a depender da ocasião. Por exemplo, as diversas cores  de tinta para  paredes disponíveis no  mercado é um tipo de informação que podemos  apenas memorizar (quando muito!), e geralmente  guardamos esse tipo de informação  numa lista ao invés de memorizar em nossos cérebros. Mas a quantidade de tinta necessária para pintar uma certa quantidade de  metros quadrados de  parede com certa tinta é algo que não memorizamos e uma informação que não colocamos em nenhuma lista. Nós inferimos a quantidade a  partir  da razão de "volume de tinta" por "área de parede" necessária para que a tinta se fixe à parede, e extrapolamos a quantidade necessária a partir  dessa razão. Foi necessário memorizar a razão, mas jamais a quantidade final para completar um serviço. As duas formas de conhecimento são de naturezas distintas.

Um objeto de dimensão zero é um objeto para o qual  não temos  escolha de características. Só temos a opção de aceitar o que ele é. E ele posui apenas 1 característica. Imagine uma régua ou uma linha reta. Qualquer segmento ao longo delas possui comprimento, e como o comprimento do segmento pode  variar de acordo com o comprimento da linha ou da  régua, o segmento é unidimensional. Agora, um ponto na régua ou na linha não possui medidas.  Ok, talvez todos os pontos numa régua podessem ser medidos em 1 mm, mas essa  medida é invariável, não há escolha. O ponto é 0-dimensional. Logo, podemos distinguir tipos de conhecimento pela quantidade de  graus de liberdade envolvidas em sua dinâmica. Conhecimentos exclusivamente memorizáveis podem ser pensados como 0-dimensionais. Por exemplo, um cátalogo de todas as espécies de peixes de água salgada, ou de todas as doenças infecciosas humanas. Entretanto, notemos: o espaço formado pelo conjunto A e a relação "objetos de higiene pessoal" é unidimensional, mas os elementos "secador", "pente", "barbeador" são 0-dimensionais. Da mesma forma, um ponto numa linha reta é 0-dimensional, um segmento dessa linha é 1-dimensional e a reta é por sua vez 1-dimensional. Um conhecimento 1-dimensional seria aquele obtido por extrapolação. Ele envolve a memorização de uma certa informação, mas permite a obtenção de uma outra informação variável, o que consome 1 grau de liberdade, como é o caso da quantidade de tinta para pintar paredes. Outro exemplo seria a eficiência do trabalho humano. Podemos ter uma noção da distância que conseguimos correr antes de começar a nos sentir cansados, e a partir desse ponto extrapolamos a relação distância × cansaço de modo que o crescimento de um é proporcional ao crescimento do outro, sem nos preocuparmos com o que acontece no longo prazo. Esse tipo de inferência homogeneamente proporcional caracteriza uma relação linear, e esse tipo de relação pertence à espaços de dimensão 1. Convém chamar conhecimentos assim caracterizados 1-dimensionais como lineares por simplicidade e conveniência, visto que a geometria analítica imagina a dimensão 1 como uma linha.

Não está explicitamente claro, mas existe uma grande distinção entre dimensionalidade e grau. Aliás, grau é a intensidade e forma com que uma quantidade varia. O grau é dado pelo expoente de uma variável. O conceito de grau usualmente só faz sentido para funções. Existe uma relação entre dimensionalidade e grau, mas que se resume quase de todo à ortografia da linguagem matemática. Para provar a distinção, basta notarmos que uma relação 1-dimensional pode ser de quase qualquer grau. Aqui entra um ponto de confusão linguística, que tentaremos resolver agora. Uma relação (ou função) constante (por exemplo, um mapa plano, sem nenhum relevo) é dita de grau zero. Uma relação (ou função) linear não-constante é dita de grau 1 (ou de primeiro grau). Funções de grau maior que 2 não podem ser representadas por linhas retas em geometria analítica, e portanto são ditas não-lineares. Pelo mesmo motivo, funções constantes também são ditas lineares, pois podem ser representadas por uma linha. Uma função de qualquer grau pode habitar 1 dimensão. O conceito de dimensão é um pouco mais difícil de assimilar. Talvez seja mais produtivo fazer uso do conceito de grau de liberdade para entender como os dois conceitos são diferentes e como ambos são importantes. Uma função em 1 dimensão determina apenas 1 valor (ou característica), ou seja, representa apenas 1 escolha ou 1 grau de liberdade. Já duas funções em 1 dimensão determinam cada uma 1 valor, ou seja, representam cada uma 1 grau de liberdade, enquanto que em conjunto representam 2 graus de liberdade. A existência de 2 graus de liberdade nos permite representar as duas funções como que perpendiculares uma à outra. As duas funções podem ou não ser lineares, independentemente do grau, juntas elas determinam um espaço de dimensão 2 (pois juntas acumulam 2 graus de liberdade).

Figura 3. D é o conjunto de conhecimento catalográfico de certas doenças. No esquema desenhado, cada ponto pode representar um nome de uma doença, ou talvez um nome com descrição médica. Esse tipo de conhecimento geralmente não apresenta estrutura, mas pode ser ordenado de algumas formas para facilitar a catalogação. Diferentemente deste tipo de conhecimento, os gráficos à direita ilustram conhecimentos 1-dimensionais, sendo o de baixo de segundo grau. Neste caso, a informação a ser gerada é flexível ou maleável, e mais do que a memorização e catalogação é necessário. Para o conhecimento linear, por exemplo, é preciso memorizar um valor da taxa de susceptibilidade de acordo com a vacinação bem como a razão entre as duas quantidades. No caso quadrático debaixo, normalmente outras informações são memorizadas que não as medidas matemáticas. Por exemplo, os dois extremos de temperatura (frio demais e quente demais) e a temperatura ideal para sair de casa são memorizados, e também a relação que faz com que a temperatura ideal seja a do meio é memorizada. A relação é o que permite fazermos extrapolação com base nesse conhecimento, o que não fazemos com o conhecimento do tipo de D.
Após a breve digressão, podemos agora falar em conhecimentos de grau superior à 1. Quando as relações se tornam mais complexas, proporções lineares não são mais suficientes para que compreendamos os fenômenos e processos que nos cercam no nosso cotidiano. Vejamos uma relação do segundo grau (quadrática), por exemplo (figura 3). Temos uma parábola com concavidade para baixo ao invés de uma linha reta. Podemos pensar em alguns processos que respeitam até certo ponto essa relação. Por exemplo, ingestão de água. Por um tempo, ingestão de água é algo bom. Chega um certo ponto em que ingerir uma quantidade ainda maior de água não é mais vantajoso (talvez porque saturamos a nossa necessidade), e enfim chega um ponto em que é extremamente desvantajoso ingerir mais água. Esse tipo de conhecimento envolve memorização de pelo menos três pontos, mas também envolve a extrapolação de informação contida entre esses pontos. Ele é um típico conhecimento que pode gerar mais informação do que o que foi memorizado a depender da necessidade. Este exemplo de relação quadrática é utilizado em teoria econômica clássica para descrever a taxa de variação do consumo de um bem de acordo com a sua disponibilidade (a lei da utilidade marginal). Entender processos em sistemas econômicos e afins, portanto, envolve conhecimentos que vão além da memorização e da extrapolação ou inferência linear. Podemos sempre pensar em sistemas e processos mais complexos e adequar a sua descrição a uma relação de grau ainda maior que 2. 

Uma maneira de diagnosticar conhecimentos de grau 2 é notar que, além da extrapolação, eles requerem a memorização de três informações. Já os de grau 3 requerem a memorização de cinco informações. Os de grau 4 requerem sete, e assim por diante. Conhecimentos de graus maiores são mais complexos e exigem maior esforço cognitivo para serem utilizados e armazenados. Da mesma forma que conhecimentos podem depender de uma variável ou de uma função de grau qualquer, eles podem também depender de várias variáveis ou várias funções de quaisquer graus, caracterizando o conhecimento multidimensional. Esse tipo de conhecimento relaciona informações referentes a processos distintos, mas que se influenciam para provocar mudanças em um sistema só. Por exemplo, a flutuação do preço dos laptops depende de várias variáveis distintas, como o poder de compra do consumidor, a utilidade do produto, a elasticidade do preço do produto, a disponibilidade e qualidade de bens substitutos etc, e depende de cada uma dessas variáveis de uma forma diferente. O sistema de mercado é considerado um sistema bastante complexo e a sua modelagem é considerada um problema bastante desafiador. 
Vamos avaliar mais exemplos de conhecimentos de diferentes graus e dimensões.
Conhecimentos 0-dimensionais
  • Rosas são vermelhas.
  • Violetas são azuis.
  • Dinheiro é bom.
Conhecimentos de grau 1
  • Quanto mais ácido o pH do solo, mais azul é a pétala da maravilha.
  • Dinheiro é bom, mas quanto mais melhor.
  • Quanto mais vivo, mais velho fico.
Conhecimentos de grau 2
  • Sol é fundamental para o desenvolvimento da planta, mas sol demais pode ser fatal para algumas.
  • Dinheiro é bom, especialmente em grandes quantidades, mas existem pessoas que não precisam ser ricas para serem felizes.
  • É bom ser jovem por causa do ímpeto e da energia, e é bom ser velho por causa da experiência e da tranquilidade.
É fundamental ressaltar que a classificação da complexidade do conhecimento se relaciona a outros fenômenos cognitivos, especialmente nos contextos escolar e acadêmico, mas não limitado a estes. Em meados do séc. XX surgiram várias discussões sobre a pedagogia e o conhecimento transmitido nas escolas. Entre os pontos mais importantes, estava a questão dos algoritmos aritméticos. Seria mais importante ensinar os algoritmos clássicos às crianças, como sempre foi feito, ou permitir que elas desenvolvam seus próprios algoritmos por conta própria? Ou será que o melhor mesmo seria ensinar algoritmos alternativos e incentivar o uso de calculadoras por crianças? O autor deste texto não defende nenhum dos pontos de vista anteriores, mas eles servem de exemplo importante para revelar a significância dos tipos de conhecimento. Tipicamente, a aritmética básica é ensinada à crianças através de algoritmos de adição, subtração, multiplicação e divisão. Esses algoritmos consistem de uma lista completa e sistemática de procedimentos para se realizar cálculos aritméticos. Eles não demandam nenhum tipo de raciocínio ou extrapolação por parte do usuário (ou da criança/estudante), inclusive podendo ser "ensinados" a máquinas. Esse conhecimento é do tipo 0-dimensional, envolvendo unicamente a memorização, no caso a memorização de passos. O estudante não desenvolve nenhum tipo de noção do comportamento do algoritmo ou do modo como o algoritmo foi desenvolvido apenas através do seu uso. Conhecimentos mais avançados de matemática necessitam o exercício de um raciocínio mais complexo por parte do aluno, mas é possível formar estudantes que mantiveram muito pouco contato com conhecimentos de dimensão maior que zero.

Conhecimentos e raciocínio multidimensionais são essenciais na formação acadêmica e psíquica de seres humanos, isto o autor assume. É essencial entender alguns princípios que são comuns a uma grande quantidade de sistemas estudados atualmente. Por exemplo, em ecologia, é comum pensar na relação predador-presa de forma linear: quanto mais predadores forem introduzidos num ecossistema, maior será a probabilidade de que a presa se torne extinta. No entanto, não é assim que acontece, vários fenômenos diferentes podem acontecer, alguns envolvendo ciclos e outros envolvendo a estabilização das duas populações. Nem todos os ecólogos compreendem esse fenômeno, e na maioria das vezes, um ecólogo não estará presente nas tomadas de decisão que envolvem o destino de ecossistemas terrestres. Esses princípios e fenômenos não-lineares não se restringem à ecologia, eles permeiam todas as áreas do conhecimento, das ciências e tecnologia às artes, administração, relações sociais, experiências pessoais e religião. Existem vários eventos corriqueiros em que podemos aplicar raciocínio não-linear, embora esta não seja a atitude mais comum. E talvez a maneira mais eficiente de combater esta tendência possa envolver a educação infantil.

Uma das fontes mais importantes de conhecimento 0-dimensional, junto da escola, é o senso comum. O senso comum é um conjunto de máximas e de regras para as quais não se fornece justificativa científica. Às vezes são fornecidas explanações satisfatórias, mas isso está longe de ser o caso geral. E em muitas questões rotineiras recorremos ao senso comum para guiarmos a ação. Talvez o maior mal do fato de o senso comum ser uma forma de conhecimento predominantemente linear e 0-dimensional é que ele barra, previne o raciocínio autônomo.

Conhecimentos 0-dimensionais são conhecimentos que não precisam de raciocínio para ser aceitos. Eles são o tipo de conhecimento que podem apenas ser observados (ou seja, provados "verdadeiros" ou "falsos"), jamais avaliados. Se uma pessoa toma o senso comum como "certo", ela dificilmente incorrerá no processo de raciocínio e extrapolação que poderia lhe revelar idéias mais próximas da realidade e mais úteis. Da mesma forma ocorre nas disciplinas básicas da educação - Línguas, História, Geografia, Matemática, Física, é difícil nomear alguma que sofra mais com essa dificuldade. Em Línguas, memorizamos regras gramaticais que nos ensinam como transformar idéias que mentalizamos em frases que escrevemos. Dificilmente é ensinado o processo de estabelecimento de regras, as relações que elas mantém entre si e com a história da língua. O aluno aprende a produzir texto escrito, mas pode não aprender a otimizar o uso da gramática, a respeitar as regras gramaticais e ortográficas pela sua lógica ou, de uma forma geral, não entende como lidar com os processos de uso e desenvolvimento da língua. Em História, ainda é bastante frequente a memorização dos acontecimentos em comparação com o estudo sistêmico da dinâmica populacional humana. Esse quadro tem sido revertido significativamente com o advento da História Crítica, mas isto ainda pode não ser o suficiente para garantir que os alunos sejam capazes de compreender eventos históricos atuais ou prever as consequências futuras desses eventos ou talvez nem mesmo se interessarem por isso. Em Física é dado um grande foco nas fórmulas clássicas e na solução mecânica de problemas, e pouco tempo é gasto no entendimento de como a nossa compreensão dos diferentes sistemas físicos se deu.

Quanto menor a dimensão de um conhecimento, menor a quantidade de esforço necessária para o seu processamento. Este é um provável motivo para uma tendência da população a recorrer mais frequentemente à formas menos dimensionais o possível de conhecimento e raciocínio no seu dia a dia. Extrapolação leva tempo, e esse tempo aumenta com o grau e a dimensionalidade do problema. Pela lei do menor esforço, tentamos sempre utilizar conhecimento 0-dimensional onde julgarmos possível. Conhecimento 0-dimensional é extremamente atrativo em comparação a conhecimentos de complexidade maior, e portanto idéias, doutrinas e escolas que foquem neste tipo de conhecimento fazem sempre bastante sucesso. Uma prática bastante comum é a adimensionalização de sistemas. Extremamente comum em matemática e física, a adimensionalização é talvez mais comum ainda no cotidiano de todas as pessoas. Em ciência, isto quer dizer reduzir a complexidade de um modelo através da "remoção" de variáveis. Por exemplo, talvez um modelo que não envolva o mercado internacional seja o suficiente para descrever o sistema econômico interno da África do Sul. Modelos sempre são mais simples que o sistema que tentamos aproximar, e neste caso eles são ainda mais simplificados. Todos nós temos nossos modelos dos sistemas que nos cercam. Muitas vezes esses modelos se resumem a opiniões, que podem ou não condizer com a "verdade" (se existir alguma) ou a realidade. Conservando modelos (ou opiniões) um tanto complexos dos sistemas que observamos, estamos mais abertos à compreensão dos processos que nos influenciam e que influenciamos de forma a nos tornarmos membros mais eficientes da sociedade. Mas frequentemente o caso é que simplificamos nossas opiniões e conhecimentos, e uma forma bastante comum de reduzir qualquer modelo à dimensão zero é rotulando.

Existe um grande desequilíbrio na natureza do conhecimento e raciocínio utilizados na sociedade, e espero ter ressaltado este desequilíbrio no parágrafo acima. É preciso focarmos mais eforços cognitivos em processos e fenômenos não-lineares, tanto individualmente quanto coletivamente, pois estes foram sempre negligenciados. Dificilmente encontraremos soluções para os problemas sociais enquanto estivermos tendenciosos aos pensamentos e conhecimentos 0-dimensionais ou lineares. É preciso reconhecer entretanto que a superação desse problema é bastante difícil, pois este é um problema recursivo que demanda ele mesmo pensamento não-linear, sem esquecer da barreira de esforço.

Como cidadão brasileiro, tenho notado uma tendência demasiadamente forte à adimensionalização e ao cultivo do conhecimento 0-dimensional e linear, e essa tendência permeia todos os setores da sociedade. Existe uma desorganização inerente da sociedade brasileira que leva a vários problemas políticos e estruturais. Essa desorganização evidencia uma falha na interação entre os diferentes setores político-econômicos, o que pode ser relacionado à incapacidade das entidades competentes de reconhecerem e formarem uma estrutura política eficiente. É extremamente tentador hipotetizar que a predominância do conhecimento 0-dimensional e linear em detrimento do não linear pelos profissionais competentes resulta na incapacidade da elaboração dessa estrutura política. Os problemas brasileiros que citei são estruturais, mas várias nações exibem seus próprios problemas devido à tendência à adimensionalidade ou linearidade do pensamento, das quais o Brasil deve estar longe de ser a pior. Não obstante, é necessário atentarmos para o fato e investir tempo pessoal, cada um de nós cidadãos, em nossos próprios processos cognitivos, para fazer a faxina aqui na nossa casa.

segunda-feira, 8 de abril de 2013

UMA SÚBITA RELAÇÃO ENTRE A SELEÇÃO NATURAL E A MORALIDADE

Ao final deste post espero ter convencido vocês de que existem possibilidades muito promissoras de encontrarmos respostas e soluções para nossos problemas psicossociais na interface entre ciências sociais e ciências exatas. Para este fim eu farei uma comparação entre um dos modelos vigentes em genética e evolução  e o modelo de bem estar social que está para ser proposto nos próximos anos.

A seleção natural é um dos fenômenos fundamentais para a teoria da evolução. Segundo ela, indivíduos ou populações mais adaptadas ao ecossistema tem maior probabilidade de sobrevivência. Istoé, populações que conseguem tirar o melhor proveito dos recursos do ambiente ao mesmo tempo que conseguem manter ciclos estáveis de reprodução tendem a sobreviver, enquanto que populações menos capazes nesse sentido tendem a entrar em extinção. É extremamente complicado medir a "capacidade" de indivíduos e populações de antigir certa eficiência no uso de recursos do ambiente, especialmente se tentarmos analisar a sua capacidade reprodutiva nesse determinado ambiente ao mesmo tempo. Portanto, para resumir este fator complexo, mas crucial, da dinâmica populacional utilizamos o termo "adaptação".

De modo geral, a evolução ocorre da seguinte forma. Ao longo do tempo, num ecossistema, o genoma (código genético) de todos os indivíduos (e por conseguinte das populações) muda, um processo chamado "mutação". As mudanças no genoma acabam alterando as várias características dos indivíduos. Por exemplo, alteram a susceptibilidade a doenças infecciosas, ou alteram o fenótipo (o resultado da expressão gênica, istoé, a morfologia e a fisiologia de um indíviduo causada pelo seu genoma). Essas alterações levam à flutuações na adaptabilidade das diferentes populações. À medida que essas flutuações fazem com que espécies se tornem mais ou menos adaptadas que outras, e à medida que as mutações fazem com que espécies novas surjam, as populações que vão se tornando menos adaptadas tendem ao desaparecimento. E assim ecossistemas mudam ao longo do tempo geológico.

Por séculos muito pouco foi possível dizer de quantitativo a respeito deste processo. Muitas características qualitativas foram sendo descobertas, mas métodos de se realizar predições precisas e numéricas demoraram demasiadamente a surgir. Recentemente, algumas abordagens tem sido tentadas. Uma delas faz uso de simulação em computador para explorar as características dinâmicas do processo evolutivo. Algumas das simulações são construídas com base num ambiente artificial (uma grade ou um plano cartesiano) povoado por indíviduos ou populações diferentes (espaços na grade ou pontos no plano), cada qual atrelado(a) a um número representando sua probabilidade de sobrevivência (Figura 1). Nestes casos, a adaptação é simplificada e traduzida na probabilidade de sobrevivência de uma espécie. Na maioria dos experimentos, os indivíduos ou populações com a menor probabilidade de sobrevivência são eliminados do ambiente a cada unidade de tempo. Quer dizer, se um indivíduo é menos adaptado, significa que ele tem menos probabilidade de sobreviver, então por que não cortar caminho e evitar cálculos complexos lidando diretamente com a probabilidade de que ele sobreviva?

Figura 1. Esquema da evolução temporal de um modelo bidimensional de uma população. O ambiente foi dividido em quadrados, cada um ocupado por um indivíduo caracterizado pela sua probabilidade de sobrevivência, que varia de acordo com a legenda e é representada numa escala de cores. O quadro inferior mostra a evolução da população após um certo tempo. Nota-se que fronteiras e regiões se deslocam, se expandem e se contraem. Note também que a cor azul escura pode tanto  representar espécies à beira da extinção quanto espaços vazios.
Como resultado, essas simulações demonstram a evolução temporal de espécies de acordo com a ecologia, a dinâmica populacional e as próprias mudanças no ambiente, reproduzindo enfim o processo de seleção natural que ocorre normalmente. Os modelos usados nas simulações nos permitem pintar um quadro dos sistemas ecológicos que descreve a dinâmica  evolutiva de cada espécie. Imaginemos  agora um gráfico como o da Figura 2: no eixo vertical, temos a adaptabilidade do indivíduo, representada e quantificada pela probabilidade de sobrevivência. Cada ponto na superfície horizontal representa um genoma diferente de um indivíduo (ou de uma população), e o modo com que a adaptação varia de acordo com o genoma acaba formando uma paisagem com relevo. Os picos na paisagem apresentam regiões em que a adaptação do genoma é mais alta, e portanto, são os lugares preferíveis para a espécie estar, istoé, a espécie tende a sofrer mutações em seu genoma até atingir uma área de alta adaptabilidade ao meio, ou a sofrer extinção. Pode-se dizer então que, em um ecossistema estável, cada espécie ocupará um pico em seu gráfico de adaptabilidade. Nesta situação, as espécies não sofrem mais variação genética e sua adaptabilidade não muda. No entanto, se houver uma variação no ecossistema, os gráficos de adaptabilidade sofrerão também variações, picos e vales mudarão de altura, e espécies que antes estavam bem adaptadas podem se tornar mal-adaptadas e propensas à extinção. Como os ecossistemas são sistemas dinâmicos (em constante mudança), os gráficos, ou melhor, paisagens de adaptabilidade (do inglês "fitness landcaspes") também estão sempre em constante mudança. Os indivíduos que se encontram nas regiões dos vales tendem a morrer de modo que as populações sobrevivem pulando de pico a pico, num processo de seleção arriscado.

Figura 2. A adaptabilidade é representada pela altura no eixo S. Neste caso, podemos olhar para o gráfico como representando as diferentes taxas de sobrevivência de acordo com diferentes genomas de uma única espécie. A medida que a espécie sofre mudanças no genoma, ela se desloca através dos eixos X-Y. Subir uma colina vermelha significa aumentar suas chances de sobrevivência, e descer um vale azul significa aumentar as chances de extinção. A paisagem representada nesta figura pode mudar com o tempo, de acordo com mudanças no ecossistema, forçando a adaptação da espécie a um novo gráfico, uma nova "paisagem". Como uma espécie que se encontra numa região baixa, ou azul, tem uma alta taxa de mortalidade, as espécies tendem a evoluir "pico a pico".


Esse modelo evolutivo possui um paralelo com um modelo social. Ao longo da história fizemos uso exaustivo dos termos, conceitos e idéias de "bem" e "mal", nos preocupamos com a qualidade de vida e com o bem-estar social. Estabelecemos direitos humanos e os fizemos respeitar a moral. No entanto, dilemas éticos surgem com frequência e não existem maneiras fáceis ou permanentes de lidar com eles. Pior ainda: a moral e os direitos variam entre regiões, nações e épocas. Conflitos éticos entre entidades discordantes levaram à violência e terrorismo e geraram milhões de mortes. Será que não existem princípios éticos universais que nos permitam uma análise aprofundada de questões éticas complexas, afim de nos auxiliar a tomar medidas mais benéficas e eficientes do ponto de vista da lei, da diplomacia, dos direitos humanos e individuais e do bem-estar social? Ou será que devemos vagar à sombra da epistemologia sem jamais obter a certeza de que respostas éticas definitivas podem ser encontradas? A minha opinião é de que existem sim princípios universais, e de que eles são descobertos por extrapolação de princípios descobertos em outras áreas, como a biologia evolutiva e a dinâmica de sistemas complexos. Para demonstrar isso, elaboremos um modelo da sociedade humana baseado no bem-estar do indivíduo.

Definamos "bem-estar": estado de um objeto, organismo ou sistema que é preferível ou desejável segundo normas morais, sociais ou emocionais do objeto em questão, ou de um grupo, organização, sociedade ou sistema da qual o objeto em questão faça parte. Talvez a característica mais importante desta definição seja o requerimento de que o objeto ou alvo a ser analisado possua uma ligação com as entidades que regulam as normas utilizadas para construir o conceito de bem-estar do próprio objeto. Por exemplo, um grupo terrorista fundamentalista islâmico do Oriente  Médio não possui bases ideológicas para definir ou forçar um  conceito de bem-estar normatizado por ele em países ocidentais, visto que pertence a uma cultura  sócio-política diferente, e fundamenta seus conceitos numa religião, doutrina ou sistema filosófico não praticada no território alvo. Esta definição de bem-estar é a que será utilizada no modelo social a ser proposto em seguida, e no caso dependerá das normas morais da sociedade humana.

Quando discutimos sobre bem-estar, duas óticas são postas em uso a depender da situação: o bem-estar individual e o bem-estar social. O primeiro apenas se preocupa com o conforto do indivíduo, enquanto que  o segundo se preocupa com o máximo conforto do maior número possível de indivíduos. Vamos propor um modelo que busque o bem estar social. As situações do primeiro tipo não carregam significância suficiente  para entrarem neste momento na discussão, além de ignorarem as relações entre diferentes indivíduos e o modo como estas influenciam seu bem-estar. Em uma sociedade com vários indivíduos interagindo, modelos que foquem no esforço individual pelo próprio bem-estar unicamente provavelmente falharão em reproduzir uma situação social semelhante à que existe hoje entre nós humanos. Como membros de uma sociedade, agimos sob o princípio de que organizados em prol do bem-estar do grupo nos tornamos mais eficientes em nossas funções. Foi provavelmente este tipo de princípio que deu origem aos organismos pluricelulares e às sociedades animais. Portanto, imaginemos que nosso modelo é composto de vários indivíduos interagindo, cada um capaz de influenciar diretamente no bem-estar de seus vizinhos e indiretamente no bem-estar de indivíduos distantes na rede social. Todos agindo em prol do bem-estar conjunto.

Para se construir um modelo, precisamos definir pelo menos estas coisas: um sistema, elementos que compõem o sistema, relações entre esses elementos e por fim as relações entre o sistema e a vizinhança (o ambiente ou o resto do universo). Já escolhemos a sociedade como sistema, já escolhemos os elementos que a compõem, os indivíduos (poderíamos ter escolhido elementos de um nível organizacional superior, como cidades ou mercados, por exemplo), falta ainda definir as relações entre os indivíduos e então as trocas entre a sociedade e o ambiene terrestre. Como discutido acima, as relações entre os indivíduos vão depender das normas sociais e emocionais, que chamaremos de "moral" (não confundamos estas normas com leis jurídicas), e tem por finalidade direcionar os atos dos indivíduos ao propósito do bem-estar social. O que poderiam vir a ser estas normas? Bom, elas basicamente mudam com o tempo e o espaço, mas independentemente de quais sejam, nosso modelo precisa ser flexível o suficiente para aceitar quaisquer normas e ainda  assim nos permitir  tirar  conclusões sobre elas. Vamos considerar qualquer conjunto de normas sociais então. Sabemos que normas mudam com o tempo, e de forma mais ou menos gradativa. O que era considerado como moralmente adequado e socialmente progessivo, hoje pode ser considerado como vil e danoso (como a escravidão) ou o contrário, como a promiscuidade (istoé, sexo casual), que passou também por uma  violenta inversão de  valores de forma bastante  lenta (e ainda está  passando na época  desta postagem). As sociedades humanas tem sempre exibido uma flexibilidade moral que transcende qualquer conjunto de normas, pois estas são progressivamente  substituídas por outras ao longo do tempo. Desta  forma portanto, em nosso modelo, devemos adotar relações contínuas entre os indivíduos. Em outras palavras, devemos adotar relações que transportem indivíduos entre estados sem barreiras claras entre si, estados com  um grau de proximidade arbitrário entre  si. Ao invés de considerarmos estados claros  e distintos como "inocente" e "culpado" ou "assassino" e "herói", permitiremos que os indivíduos assumam qualquer  grau numa faixa entre total contraventor das normais  sociais e perfeito mantenedor das normais sociais, talvez sem nunca atingir qualquer dos dois extremos (vamos definir como "paisagem moral" esta faixa de estados do indivíduo) . Esta é a nossa primeira suposição a respeito das relações entre os elementos (indivíduos) do nosso sistema (sociedade).

Agora, a flexibilidade da moral  humana nos permite ver que não existe uma escala absoluta que mapeie a nossa paisagem moral numa gradação definida de "negativo" à "positivo". Não existe uma  maneira de verificar na natureza qual o sistema moral é o adequado para definir os estados que são preferíveis e os que não são (na realidade, um grande número de sistemas morais chega a ser incompatível com uma paisagem moral contínua). O que observamos é uma  enorme variabilidade de escalas. Existem discordâncias de preferência, extensão, definição e interpretação etc. Outra forma de se enxergar isso é  olhando de volta para a construção do nosso modelo. Tentamos construir um modelo que aceite qualquer conjunto de normais, praticadas ou não ao longo de nossa história, e isto inclui normas discordantes em qualquer grau. Isto nos sugere que relações não-lineares são o tipo mais adequado de relações para o nosso modelo. Isto quer dizer que não devemos adotar  uma evolução perfeitamente gradativa para a nossa paisagem moral, ou faixa moral. Existe uma certa complexidade inerente aos nossos sistemas sociais que não nos permite inferir o estado de um indivíduo de forma simples apenas considerando seus atos.Esta é a nossa  segunda  suposição acerca das relações entre os elementos (indivíduos) do nosso sistema (sociedade). A Figura 3 ilustra os  nossos conceitos utilizados na busca por relações adequadas entre os elementos de nosso sistema.

Figura 3. Acima: uma relação descontínua, como a relação  prevista pela Lei escrita ou  pela moral cristã. A Lei escrita prevê uma categorização discreta de indivíduos baseada em atitudes (ou crimes), enquanto que a moral cristã categoriza indivíduos em compartimentos polarizados (pecadores,  inocentes, santos, samaritanos...). Esquerda: uma relação  linear, como a doutrina budista é às vezes interpretada: quanto mais distantes da violência e dos desejos, mais próximos estamos de buda. Direita: uma relação não-linear. Note que a evolução é gradativa, mas no entanto não  permite uma avaliação simples do estado do indivíduo baseado apenas na qualidade de suas atitudes. Devido à complexidade do sistema social,  precisamos observar outros fatores antes de fornecermos uma classificação do estado do indivíduo.
O último passo seria definirmos as relações entre o sistema e a vizinhança, ou seja, entre a sociedade e a Terra ou o universo. Bom, vamos descartar a relevância desta característica  no presente momento assumindo por hora que a sociedade é um sistema isolado. O nosso modelo está  quase pronto. Faltaria ainda definir a sua forma exata através de definições finais das relações, sejam elas relações lógico-abstratas ou equações matemáticas. Mas, mesmo sem definir  uma forma exata, sabemos com grande  propriedade agora com o que o nosso modelo deve parecer. Imaginemos um indivíduo no nosso modelo. Ele deseja evoluir para um estado superior de bem-estar, junto com à sociedade, às vezes se sacrificando para que um número maior de indivíduos atinjam um patamar maior de bem-estar, às vezes sacrificando outros indivíduos em prol do bem-estar também de um número maior de outros  indivíduos. Econtrar a "solução" para o nosso sistema, istoé, descobrir  uma maneira de fazer predições precisas a respeito dele com base em valores  iniciais de suas variáveis, se torna quase uma questão de otimização matemática (onde nós podemos utilizar algoritmos evolutivos, por exemplo). O nosso indivíduo atravessa uma paisagem moral contínua  não-linear como aquela da Figura 3 (direita). O indivíduo, como cada um de nós, passa por altos e baixos (picos e vales), mas deseja sempre habitar em volta do topo de uma colina. No final  das contas, este modelo se assemelha bastante com o modelo evolutivo representado na Figura 2, e ambos os sistemas podem compartilhar da mesma solução e métodos de análise, seja o de uma população evoluindo sob o princípio da seleção natural, seja o de um indivíduo agindo sob a égide da moral vigente.

Existem mais lições tiradas disto que vão  além  da possibilidade  de analisar, modelar e solucionar sistemas sociais, e fazer equivalência com sistemas de outras  disciplinas. Por exemplo, podemos aprender que não devemos adotar  uma bússola moral como absoluta. Devemos sempre esperar que a paisagem moral  passe por transformações, de sutis à violentas, e que podemos ser bastante prejudicados como indivíduos se falharmos em nos adaptar a estas mudanças. Não devemos  julgar pessoas baseando-nos apenas em seus atos e em  como esses atos são classificados numa escala de "nocividade", pois as relações humanas são complexas demais para permitir conclusões confiáveis a partir apenas das consequências imediatas e às pessoas próximas na rede social. Atos que parecem  nocivos por prejudicar  um indivíduo próximo na rede do  perpetrador podem acabar influenciando beneficamente um grande número de indivíduos de forma  sutil (mas enorme se somadas todas as influências) no longo termo e nas longas distâncias da  rede (esta é, na verdade, uma característica marcante de sistemas caóticos ou auto-críticos - a sensibilidade a estímulos, ou perturbações). Também podemos interpretar que atos considerados "nocivos" e "contravetores" não devem ser julgados como tais por um indivíduo que não pertence ao sistema social que ele observa. Por exemplo, praticantes de religiões diferentes como cristianismo, islamismo e candomblé não devem julgar uns aos outros, pois não há um consenso moral que os unifique. Seus sistemas de doutrina estão separados.