segunda-feira, 8 de abril de 2013

UMA SÚBITA RELAÇÃO ENTRE A SELEÇÃO NATURAL E A MORALIDADE

Ao final deste post espero ter convencido vocês de que existem possibilidades muito promissoras de encontrarmos respostas e soluções para nossos problemas psicossociais na interface entre ciências sociais e ciências exatas. Para este fim eu farei uma comparação entre um dos modelos vigentes em genética e evolução  e o modelo de bem estar social que está para ser proposto nos próximos anos.

A seleção natural é um dos fenômenos fundamentais para a teoria da evolução. Segundo ela, indivíduos ou populações mais adaptadas ao ecossistema tem maior probabilidade de sobrevivência. Istoé, populações que conseguem tirar o melhor proveito dos recursos do ambiente ao mesmo tempo que conseguem manter ciclos estáveis de reprodução tendem a sobreviver, enquanto que populações menos capazes nesse sentido tendem a entrar em extinção. É extremamente complicado medir a "capacidade" de indivíduos e populações de antigir certa eficiência no uso de recursos do ambiente, especialmente se tentarmos analisar a sua capacidade reprodutiva nesse determinado ambiente ao mesmo tempo. Portanto, para resumir este fator complexo, mas crucial, da dinâmica populacional utilizamos o termo "adaptação".

De modo geral, a evolução ocorre da seguinte forma. Ao longo do tempo, num ecossistema, o genoma (código genético) de todos os indivíduos (e por conseguinte das populações) muda, um processo chamado "mutação". As mudanças no genoma acabam alterando as várias características dos indivíduos. Por exemplo, alteram a susceptibilidade a doenças infecciosas, ou alteram o fenótipo (o resultado da expressão gênica, istoé, a morfologia e a fisiologia de um indíviduo causada pelo seu genoma). Essas alterações levam à flutuações na adaptabilidade das diferentes populações. À medida que essas flutuações fazem com que espécies se tornem mais ou menos adaptadas que outras, e à medida que as mutações fazem com que espécies novas surjam, as populações que vão se tornando menos adaptadas tendem ao desaparecimento. E assim ecossistemas mudam ao longo do tempo geológico.

Por séculos muito pouco foi possível dizer de quantitativo a respeito deste processo. Muitas características qualitativas foram sendo descobertas, mas métodos de se realizar predições precisas e numéricas demoraram demasiadamente a surgir. Recentemente, algumas abordagens tem sido tentadas. Uma delas faz uso de simulação em computador para explorar as características dinâmicas do processo evolutivo. Algumas das simulações são construídas com base num ambiente artificial (uma grade ou um plano cartesiano) povoado por indíviduos ou populações diferentes (espaços na grade ou pontos no plano), cada qual atrelado(a) a um número representando sua probabilidade de sobrevivência (Figura 1). Nestes casos, a adaptação é simplificada e traduzida na probabilidade de sobrevivência de uma espécie. Na maioria dos experimentos, os indivíduos ou populações com a menor probabilidade de sobrevivência são eliminados do ambiente a cada unidade de tempo. Quer dizer, se um indivíduo é menos adaptado, significa que ele tem menos probabilidade de sobreviver, então por que não cortar caminho e evitar cálculos complexos lidando diretamente com a probabilidade de que ele sobreviva?

Figura 1. Esquema da evolução temporal de um modelo bidimensional de uma população. O ambiente foi dividido em quadrados, cada um ocupado por um indivíduo caracterizado pela sua probabilidade de sobrevivência, que varia de acordo com a legenda e é representada numa escala de cores. O quadro inferior mostra a evolução da população após um certo tempo. Nota-se que fronteiras e regiões se deslocam, se expandem e se contraem. Note também que a cor azul escura pode tanto  representar espécies à beira da extinção quanto espaços vazios.
Como resultado, essas simulações demonstram a evolução temporal de espécies de acordo com a ecologia, a dinâmica populacional e as próprias mudanças no ambiente, reproduzindo enfim o processo de seleção natural que ocorre normalmente. Os modelos usados nas simulações nos permitem pintar um quadro dos sistemas ecológicos que descreve a dinâmica  evolutiva de cada espécie. Imaginemos  agora um gráfico como o da Figura 2: no eixo vertical, temos a adaptabilidade do indivíduo, representada e quantificada pela probabilidade de sobrevivência. Cada ponto na superfície horizontal representa um genoma diferente de um indivíduo (ou de uma população), e o modo com que a adaptação varia de acordo com o genoma acaba formando uma paisagem com relevo. Os picos na paisagem apresentam regiões em que a adaptação do genoma é mais alta, e portanto, são os lugares preferíveis para a espécie estar, istoé, a espécie tende a sofrer mutações em seu genoma até atingir uma área de alta adaptabilidade ao meio, ou a sofrer extinção. Pode-se dizer então que, em um ecossistema estável, cada espécie ocupará um pico em seu gráfico de adaptabilidade. Nesta situação, as espécies não sofrem mais variação genética e sua adaptabilidade não muda. No entanto, se houver uma variação no ecossistema, os gráficos de adaptabilidade sofrerão também variações, picos e vales mudarão de altura, e espécies que antes estavam bem adaptadas podem se tornar mal-adaptadas e propensas à extinção. Como os ecossistemas são sistemas dinâmicos (em constante mudança), os gráficos, ou melhor, paisagens de adaptabilidade (do inglês "fitness landcaspes") também estão sempre em constante mudança. Os indivíduos que se encontram nas regiões dos vales tendem a morrer de modo que as populações sobrevivem pulando de pico a pico, num processo de seleção arriscado.

Figura 2. A adaptabilidade é representada pela altura no eixo S. Neste caso, podemos olhar para o gráfico como representando as diferentes taxas de sobrevivência de acordo com diferentes genomas de uma única espécie. A medida que a espécie sofre mudanças no genoma, ela se desloca através dos eixos X-Y. Subir uma colina vermelha significa aumentar suas chances de sobrevivência, e descer um vale azul significa aumentar as chances de extinção. A paisagem representada nesta figura pode mudar com o tempo, de acordo com mudanças no ecossistema, forçando a adaptação da espécie a um novo gráfico, uma nova "paisagem". Como uma espécie que se encontra numa região baixa, ou azul, tem uma alta taxa de mortalidade, as espécies tendem a evoluir "pico a pico".


Esse modelo evolutivo possui um paralelo com um modelo social. Ao longo da história fizemos uso exaustivo dos termos, conceitos e idéias de "bem" e "mal", nos preocupamos com a qualidade de vida e com o bem-estar social. Estabelecemos direitos humanos e os fizemos respeitar a moral. No entanto, dilemas éticos surgem com frequência e não existem maneiras fáceis ou permanentes de lidar com eles. Pior ainda: a moral e os direitos variam entre regiões, nações e épocas. Conflitos éticos entre entidades discordantes levaram à violência e terrorismo e geraram milhões de mortes. Será que não existem princípios éticos universais que nos permitam uma análise aprofundada de questões éticas complexas, afim de nos auxiliar a tomar medidas mais benéficas e eficientes do ponto de vista da lei, da diplomacia, dos direitos humanos e individuais e do bem-estar social? Ou será que devemos vagar à sombra da epistemologia sem jamais obter a certeza de que respostas éticas definitivas podem ser encontradas? A minha opinião é de que existem sim princípios universais, e de que eles são descobertos por extrapolação de princípios descobertos em outras áreas, como a biologia evolutiva e a dinâmica de sistemas complexos. Para demonstrar isso, elaboremos um modelo da sociedade humana baseado no bem-estar do indivíduo.

Definamos "bem-estar": estado de um objeto, organismo ou sistema que é preferível ou desejável segundo normas morais, sociais ou emocionais do objeto em questão, ou de um grupo, organização, sociedade ou sistema da qual o objeto em questão faça parte. Talvez a característica mais importante desta definição seja o requerimento de que o objeto ou alvo a ser analisado possua uma ligação com as entidades que regulam as normas utilizadas para construir o conceito de bem-estar do próprio objeto. Por exemplo, um grupo terrorista fundamentalista islâmico do Oriente  Médio não possui bases ideológicas para definir ou forçar um  conceito de bem-estar normatizado por ele em países ocidentais, visto que pertence a uma cultura  sócio-política diferente, e fundamenta seus conceitos numa religião, doutrina ou sistema filosófico não praticada no território alvo. Esta definição de bem-estar é a que será utilizada no modelo social a ser proposto em seguida, e no caso dependerá das normas morais da sociedade humana.

Quando discutimos sobre bem-estar, duas óticas são postas em uso a depender da situação: o bem-estar individual e o bem-estar social. O primeiro apenas se preocupa com o conforto do indivíduo, enquanto que  o segundo se preocupa com o máximo conforto do maior número possível de indivíduos. Vamos propor um modelo que busque o bem estar social. As situações do primeiro tipo não carregam significância suficiente  para entrarem neste momento na discussão, além de ignorarem as relações entre diferentes indivíduos e o modo como estas influenciam seu bem-estar. Em uma sociedade com vários indivíduos interagindo, modelos que foquem no esforço individual pelo próprio bem-estar unicamente provavelmente falharão em reproduzir uma situação social semelhante à que existe hoje entre nós humanos. Como membros de uma sociedade, agimos sob o princípio de que organizados em prol do bem-estar do grupo nos tornamos mais eficientes em nossas funções. Foi provavelmente este tipo de princípio que deu origem aos organismos pluricelulares e às sociedades animais. Portanto, imaginemos que nosso modelo é composto de vários indivíduos interagindo, cada um capaz de influenciar diretamente no bem-estar de seus vizinhos e indiretamente no bem-estar de indivíduos distantes na rede social. Todos agindo em prol do bem-estar conjunto.

Para se construir um modelo, precisamos definir pelo menos estas coisas: um sistema, elementos que compõem o sistema, relações entre esses elementos e por fim as relações entre o sistema e a vizinhança (o ambiente ou o resto do universo). Já escolhemos a sociedade como sistema, já escolhemos os elementos que a compõem, os indivíduos (poderíamos ter escolhido elementos de um nível organizacional superior, como cidades ou mercados, por exemplo), falta ainda definir as relações entre os indivíduos e então as trocas entre a sociedade e o ambiene terrestre. Como discutido acima, as relações entre os indivíduos vão depender das normas sociais e emocionais, que chamaremos de "moral" (não confundamos estas normas com leis jurídicas), e tem por finalidade direcionar os atos dos indivíduos ao propósito do bem-estar social. O que poderiam vir a ser estas normas? Bom, elas basicamente mudam com o tempo e o espaço, mas independentemente de quais sejam, nosso modelo precisa ser flexível o suficiente para aceitar quaisquer normas e ainda  assim nos permitir  tirar  conclusões sobre elas. Vamos considerar qualquer conjunto de normas sociais então. Sabemos que normas mudam com o tempo, e de forma mais ou menos gradativa. O que era considerado como moralmente adequado e socialmente progessivo, hoje pode ser considerado como vil e danoso (como a escravidão) ou o contrário, como a promiscuidade (istoé, sexo casual), que passou também por uma  violenta inversão de  valores de forma bastante  lenta (e ainda está  passando na época  desta postagem). As sociedades humanas tem sempre exibido uma flexibilidade moral que transcende qualquer conjunto de normas, pois estas são progressivamente  substituídas por outras ao longo do tempo. Desta  forma portanto, em nosso modelo, devemos adotar relações contínuas entre os indivíduos. Em outras palavras, devemos adotar relações que transportem indivíduos entre estados sem barreiras claras entre si, estados com  um grau de proximidade arbitrário entre  si. Ao invés de considerarmos estados claros  e distintos como "inocente" e "culpado" ou "assassino" e "herói", permitiremos que os indivíduos assumam qualquer  grau numa faixa entre total contraventor das normais  sociais e perfeito mantenedor das normais sociais, talvez sem nunca atingir qualquer dos dois extremos (vamos definir como "paisagem moral" esta faixa de estados do indivíduo) . Esta é a nossa primeira suposição a respeito das relações entre os elementos (indivíduos) do nosso sistema (sociedade).

Agora, a flexibilidade da moral  humana nos permite ver que não existe uma escala absoluta que mapeie a nossa paisagem moral numa gradação definida de "negativo" à "positivo". Não existe uma  maneira de verificar na natureza qual o sistema moral é o adequado para definir os estados que são preferíveis e os que não são (na realidade, um grande número de sistemas morais chega a ser incompatível com uma paisagem moral contínua). O que observamos é uma  enorme variabilidade de escalas. Existem discordâncias de preferência, extensão, definição e interpretação etc. Outra forma de se enxergar isso é  olhando de volta para a construção do nosso modelo. Tentamos construir um modelo que aceite qualquer conjunto de normais, praticadas ou não ao longo de nossa história, e isto inclui normas discordantes em qualquer grau. Isto nos sugere que relações não-lineares são o tipo mais adequado de relações para o nosso modelo. Isto quer dizer que não devemos adotar  uma evolução perfeitamente gradativa para a nossa paisagem moral, ou faixa moral. Existe uma certa complexidade inerente aos nossos sistemas sociais que não nos permite inferir o estado de um indivíduo de forma simples apenas considerando seus atos.Esta é a nossa  segunda  suposição acerca das relações entre os elementos (indivíduos) do nosso sistema (sociedade). A Figura 3 ilustra os  nossos conceitos utilizados na busca por relações adequadas entre os elementos de nosso sistema.

Figura 3. Acima: uma relação descontínua, como a relação  prevista pela Lei escrita ou  pela moral cristã. A Lei escrita prevê uma categorização discreta de indivíduos baseada em atitudes (ou crimes), enquanto que a moral cristã categoriza indivíduos em compartimentos polarizados (pecadores,  inocentes, santos, samaritanos...). Esquerda: uma relação  linear, como a doutrina budista é às vezes interpretada: quanto mais distantes da violência e dos desejos, mais próximos estamos de buda. Direita: uma relação não-linear. Note que a evolução é gradativa, mas no entanto não  permite uma avaliação simples do estado do indivíduo baseado apenas na qualidade de suas atitudes. Devido à complexidade do sistema social,  precisamos observar outros fatores antes de fornecermos uma classificação do estado do indivíduo.
O último passo seria definirmos as relações entre o sistema e a vizinhança, ou seja, entre a sociedade e a Terra ou o universo. Bom, vamos descartar a relevância desta característica  no presente momento assumindo por hora que a sociedade é um sistema isolado. O nosso modelo está  quase pronto. Faltaria ainda definir a sua forma exata através de definições finais das relações, sejam elas relações lógico-abstratas ou equações matemáticas. Mas, mesmo sem definir  uma forma exata, sabemos com grande  propriedade agora com o que o nosso modelo deve parecer. Imaginemos um indivíduo no nosso modelo. Ele deseja evoluir para um estado superior de bem-estar, junto com à sociedade, às vezes se sacrificando para que um número maior de indivíduos atinjam um patamar maior de bem-estar, às vezes sacrificando outros indivíduos em prol do bem-estar também de um número maior de outros  indivíduos. Econtrar a "solução" para o nosso sistema, istoé, descobrir  uma maneira de fazer predições precisas a respeito dele com base em valores  iniciais de suas variáveis, se torna quase uma questão de otimização matemática (onde nós podemos utilizar algoritmos evolutivos, por exemplo). O nosso indivíduo atravessa uma paisagem moral contínua  não-linear como aquela da Figura 3 (direita). O indivíduo, como cada um de nós, passa por altos e baixos (picos e vales), mas deseja sempre habitar em volta do topo de uma colina. No final  das contas, este modelo se assemelha bastante com o modelo evolutivo representado na Figura 2, e ambos os sistemas podem compartilhar da mesma solução e métodos de análise, seja o de uma população evoluindo sob o princípio da seleção natural, seja o de um indivíduo agindo sob a égide da moral vigente.

Existem mais lições tiradas disto que vão  além  da possibilidade  de analisar, modelar e solucionar sistemas sociais, e fazer equivalência com sistemas de outras  disciplinas. Por exemplo, podemos aprender que não devemos adotar  uma bússola moral como absoluta. Devemos sempre esperar que a paisagem moral  passe por transformações, de sutis à violentas, e que podemos ser bastante prejudicados como indivíduos se falharmos em nos adaptar a estas mudanças. Não devemos  julgar pessoas baseando-nos apenas em seus atos e em  como esses atos são classificados numa escala de "nocividade", pois as relações humanas são complexas demais para permitir conclusões confiáveis a partir apenas das consequências imediatas e às pessoas próximas na rede social. Atos que parecem  nocivos por prejudicar  um indivíduo próximo na rede do  perpetrador podem acabar influenciando beneficamente um grande número de indivíduos de forma  sutil (mas enorme se somadas todas as influências) no longo termo e nas longas distâncias da  rede (esta é, na verdade, uma característica marcante de sistemas caóticos ou auto-críticos - a sensibilidade a estímulos, ou perturbações). Também podemos interpretar que atos considerados "nocivos" e "contravetores" não devem ser julgados como tais por um indivíduo que não pertence ao sistema social que ele observa. Por exemplo, praticantes de religiões diferentes como cristianismo, islamismo e candomblé não devem julgar uns aos outros, pois não há um consenso moral que os unifique. Seus sistemas de doutrina estão separados.