domingo, 6 de outubro de 2019

Teorema da ressignificação

Obs.: A exposição a seguir trata de um modelo puramente matemático envolvendo abstrações de conceitos do mundo real de maneira supersimplificada e um tanto arbitrária. Não se tem a pretensão de um embasamento na psicologia ou de qualquer implicação na área (haja vista, nesta área, o autor é completamente leigo). A esperança é que o modelo possa servir de inspiração para analogias que conectem o mundo quantitativo ao mundo subjetivo.

Definição: A trajetória de vida é uma sequência ordenada de eventos arbitrariamente separados, relacionados a um único ser ou indivíduo, de forma a compor uma descrição contínua e completa de todos os eventos relacionados a tal indivíduo.  Uma pessoa é um ser vivo dotado de racionalidade, autoconsciência e unicamente identificado  por uma combinação de  
  1. Personalidade – um conjunto de características inatas ou adquiridas, sobre as quais não nos preocuparemos em fornecer uma definição precisa. 
  2. Memórias – um registro imperfeito, incompleto e subjetivo de sua trajetória de vida. Pode inclusive conter eventos falsos.

Suponhamos que todos os seres humanos pertencem à categoria de “pessoas” como definida acima. É simples admitir que as pessoas, assim como todos os seres vivos, estão sujeitas a um processo complexo de seleção natural, sendo alvos de inúmeras influências físicas e biológicas quando observadas em escalas de tempo geológico. Por argumento, ignoremos esta estrutura evolucionária “física”. Também é simples admitir que as pessoas habitam uma estrutura de organização populacional primariamente abstrata, informalmente referida por “sociedade humana” ou apenas “sociedade” - os aspectos físicos dessa organização também serão ignorados. Admitamos que a sociedade apresenta uma estrutura Darwiniana onde diferentes atores competem por proeminência em “ecossistemas sociais” diferentes (inclusive a palavra “ecossistema” já foi assimilada como jargão no ramo de negócios para descrever as diferentes áreas de atuação industrial).

Definição: Um ecossistema social é um conjunto de elementos sociais de mesmo tipo interligados formando uma rede complexa. Por exemplo, um país pode ser considerado um ecossistema social, e o conjunto de todas as empresas de tecnologia da informação também pode ser considerado um ecossistema social.
Um ecossistema social é dotado de pelo menos uma função que associa os seus elementos à um conjunto ordenado de categorias de proeminência, denotado aqui por hierarquia.

Uma definição mais generalista de ecossistema social é possível, porém convém evitar as complicações decorridas de tal generalidade. Além disso, não precisamos nos preocupar com a exata natureza de uma hierarquia, qualquer função que ordene os elementos de um ecossistema social pode ser encarada como hierarquia, e portanto somos livres para definir hierarquias arbitrárias em qualquer ecossistema social. Para simplificar a discussão, sem perda de generalidade, vamos nos ater a apenas um ecossistema social qualquer e chamá-lo de “sociedade”. Também vamos supor que os atores básicos desta sociedade são pessoas (isto é, não pode haver um elemento nessa sociedade na ordem mais inferior possível que não seja uma pessoa).

A estrutura Darwiniana que supomos para o ecossistema social (a sociedade) implica uma organização da pessoas de acordo com uma hierarquia. Podemos aceitar isto fazendo uma analogia com a seleção natural: na natureza, cada indivíduo tem autonomia e uma subjetividade própria (pelo menos no sentido de que podemos, externamente, atribuir alguma filosofia ao ciclo de vida desse indivíduo), porém a seleção natural surge automaticamente como resultado da interação de todos os indivíduos no meio-ambiente, de modo que a hierarquia definida pela adaptabilidade das espécies determina (“prevê”) o futuro de cada população. Isto ocorre independente do nicho de cada espécie e da trajetória de vida particular de qualquer indivíduo.

No entanto, a estrutura Darwiniana social é muito diferente da sua contraparte biológica. Também não estamos interessados aqui em definir precisamente quais são as forças e mecanismos evolutivos que interferem na história das populações, e nem mesmo se pretende definir o significado de “população” no contexto de um ecossistema social. O que gostaríamos de extrair da analogia com um sistema biológico é apenas que é inescapável para as pessoas serem categorizadas dentro de um ecossistema social sob a lente de uma hierarquia, mesmo que as consequências de ser categorizado sejam irrisórias.

Muito menos se pretende praticar um pedantismo de se colocar uma filosofia social particular como compasso, ou de se buscar perspectivas objetivas e absolutas sobre o problema de se navegar pela sociedade. O que gostaríamos de observar é apenas que, dadas as definições anteriores, as pessoas navegam de forma contínua e orientada através da sociedade e do tempo (um fato que, apesar de parecer óbvio por sua intuitividade, quisemos demonstrar com um certo rigor). Esse “navegar” se dá através de eventos (frequentemente marcados por “escolhas” ou decisões), que por sua vez compõem uma trajetória de vida. Vista sob a ótica de uma hierarquia atuando sobre um ecossistema social, a trajetória de vida de uma pessoa é “orientada”, ou seja, cada ponto nessa trajetória apresenta um componente de direção, além disso podemos definir uma “distância” entre quaisquer dois pontos nela.

Como já foi mencionado, não é interessante focarmos nosso estudo em alguma hierarquia em particular, inclusive não vamos considerar hierarquias “coletivas”, que sejam adotadas por várias pessoas ao mesmo tempo. Ao invés disso, admitamos que cada pessoa, quer ela perceba ou não, em um determinado ecossistema social ao qual pertence, adota como modelo mental desse ecossistema uma hierarquia de sua escolha. Automaticamente isto coloca sua trajetória de vida num espaço orientado como foi descrito no parágrafo anterior, e determina uma categoria para cada ponto neste espaço, de acordo com a interpretação particular dessa pessoa.

Agora precisamos apenas de algumas suposições a mais. Admitamos apenas hierarquias “suaves”, ou seja, hierarquias em que dois estados imediatamente próximos num ecossistema social são associados apenas ou à mesma categoria, ou à categorias imediatamente próximas.  Suponhamos, por fim, que exista uma implicação entre pertencer a uma determinada categoria e alguma consequência para o indivíduo, também de forma “suave” como descrito acima (grosseiramente falando). Esta consequência deve possuir algum aspecto quantitativo de forma que possamos medir sua influência sobre a qualidade de vida do indivíduo.

Após estarmos tão carregados de suposições e definições, consideremos, finalmente, um exemplo ilustrativo. Uma pessoa católica pode se imaginar dentro de um ecossistema social da sua paróquia. Neste contexto, ela pode adotar uma hierarquia (ou seja, uma função quantitativa “suave” sobre si mesma e outras pessoas) em que é medido o envolvimento em atividades relacionadas à paróquia. Tal hierarquia não necessariamente consiste de uma relação linear entre a quantidade de atividades desempenhadas por uma pessoa e o seu nível de proeminência no ecossistema social da paróquia, podemos imaginar que uma quantidade intermediária de atividades é o que seria mais “bem visto”. Como consequência de pertencer a uma dada categoria de proeminência, imaginemos que quanto melhor (maior) for sua categoria, mais o indivíduo desfrutará relações interpessoais mutualistas com os outros membros da paróquia. Ou seja, descrevendo de maneira simples, quanto mais um membro da paróquia se envolver de maneira equilibrada, mais ele será tido como importante para a paróquia e mais ele poderá dispor da colaboração dos outros membros. Ressaltamos que esta hierarquia se aplica somente a este indivíduo em particular, e que é possível que não possamos aplicar o mesmo raciocínio a nenhum outro membro desta paróquia, estamos nos atendo a explorar o modelo mental particular de um indivíduo. É fácil enxergar que a estrutura formada pelo ecossistema social a que a pessoa pertence e pela hierarquia pessoal que a pessoa adota como modelo mental ajudam a determinar as decisões que esta pessoa tomará, seguindo uma lógica evolutiva onde a hierarquia, aliada com uma estrutura recompensatória, assume o papel de função de adaptabilidade a ser otimizada. Trazendo este pensamento para os termos definidos anteriormente neste texto, em um ponto qualquer de sua trajetória de vida, uma pessoa “se sentirá pressionada” a seguir uma direção que diminua a sua distância para um certo “pico”, algum ponto em que o valor recompensatório da sua categoria seja máximo (mas não há garantia alguma de que tal decisão direcional será tomada). Podemos pensar nos “picos” como sendo possíveis “objetivos de vida” de uma pessoa. Observe, entretanto, que uma pessoa como descrita acima navega por um espaço em que uma das coordenadas é o tempo. Enquanto uma pessoa pode permanecer estacionária com relação a outras coordenadas, ela não pode permanecer estacionária com relação ao tempo, sempre avançando neste eixo, e portanto jamais residindo em algum ponto por um instante qualquer que não seja infinitesimal. Portanto, dada esta natureza inexorável do tempo, é até possível falar em convergência quando se trata de trajetórias de vida, mas é muito difícil falar em equilíbrio.

Na ausência de hierarquias coletivas ou absolutas, no âmbito deste texto, resta a cada pessoa adotar sua própria (ou seja, adotar seus próprios objetivos de vida). Obviamente, esta escolha de hierarquia não ocorre sempre de forma consciente. Sob a ótica de um determinado modelo mental composto de um ecossistema social e de uma hierarquia sobre ele, um indivíduo pode se imaginar classificado pela distância para com seu objetivo (não necessariamente um ponto específico no espaço de ecossistema social versus tempo, mas possivelmente um conjunto de pontos, ou uma região). Estar longe de um pico e perto de um vale implica em baixa recompensa ou punições e, caso contrário, estar próximo de um pico e longe de um vale implica em uma alta recompensa, de modo que se observa uma pressão “Darwiniana” para que o indivíduo se desloque orientado para os picos. Na evolução biológica, entretanto, essa pressão evolutiva só é observada como consequência estatística do ciclo de sobrevivência e morte, já que é a hierarquia de adaptabilidade que “age” sobre os indivíduos, e não os indivíduos que agem sobre si mesmos de posse do conhecimento do quanto são adaptados. Esta realidade é provavelmente diferente do que podemos esperar para um ecossistema social, contudo é razoável estimar que qualquer escolha de hierarquia sob a qual analisar um indivíduo num ecossistema social é, em última instância, arbitrária e simplista, de modo que podemos considerar o comportamento de um indivíduo como (grosseiramente falando) imprevisível, mesmo admitindo que ele sofra “pressões” sociais durante a tomada de decisão.

A partir do desenvolvido, podemos deduzir algumas consequências relevantes a respeito das decisões de uma pessoa para com relação à sua trajetória de vida.

Teorema: Dado um estado particular de uma pessoa num espaço composto de ecossistema social versus tempo, e dada uma trajetória de vida desta pessoa a qual este estado particular pertence, sempre é possível encontrar uma subtrajetória (futura) do estado atual para um “pico” com relação à uma hierarquia. Além disso, a hierarquia dos estados correspondentes a essa subtrajetória é “suave”.

Demonstração: A única restrição feita sobre a natureza de uma trajetória de vida no espaço de um ecossistema social versus tempo foi a de que uma pessoa deve se mover somente numa mesma direção temporal. Nada foi dito a respeito da conectividade dos pontos nesse espaço sociotemporal, nem foi exigido que se considere somente uma determinada hierarquia. Escolhamos uma hierarquia qualquer e consideremos, então, os casos possíveis: 
  1. O estado atual não está conectado a mais nenhum ponto futuro. Então, ele é, trivialmente, o pico local e a trajetória de vida da pessoa se encerra nele. A subtrajetória que leva um pico é a trajetória trivial vazia (uma sequência de estados que não contém estado algum). Uma trajetória vazia é trivialmente “suave”. 
  2. O estado atual está conectado a mais um ponto futuro. Há duas possibilidades. Primeiro, se a hierarquia atual dita que o ponto futuro é de uma categoria igual ou superior, então podemos traçar uma subtrajetória como uma linha conectando o estado atual ao ponto futuro. Esta subtrajetória respeita a definição de “suave” dada anteriormente. Segundo, se a hierarquia atual dita que o ponto futuro é de uma categoria inferior, então podemos escolher outra hierarquia arbitrária que recaia sob o primeiro caso. Utilizando um argumento indutivo para estender o caso atual para uma sequência de estados, podemos traçar uma trajetória estritamente crescente, que assumirá um valor máximo num conjunto limitado, chegando então, em um pico. Para hierarquias contínuas, podemos invocar a continuidade de funções em espaços métricos para assegurar que podemos traçar uma trajetória contínua na vizinhança de um ponto, e pelo teorema de Weierstrass (valor extremo) temos que a hierarquia assume um valor máximo (pico) nessa vizinhança. Uma hierarquia contínua respeita a definição de “suave” estabelecida anteriormente. Somos livres para escolher uma hierarquia em que um valor máximo ocorra na borda da vizinhança.
Como possivelmente trocamos de hierarquia múltiplas vezes enquanto traçamos a subtrajetória, precisamos nos assegurar de que realmente nos encontramos em um pico. Para isso, basta olhar para o último estado dessa subtrajetória e para a última hierarquia escolhida para determinar sua escolha. Por construção, o último estado está associado com o valor máximo local que a hierarquia pode assumir na sua vizinhança imediata, e caracteriza, portanto, um pico. Isto encerra a demonstração.
 ■

Discutamos o teorema exposto acima. Claramente, as definições “rigorosas” e simplistas construídas acima visam modelar grosseiramente o processo pelo qual uma pessoa se permite guiar por seu modelo de mundo. Como foi indicado várias vezes, por uma hierarquia se pretende denotar, no mundo real, uma doutrina, crença ou juízo de valor de uma pessoa com respeito à sua posição na sociedade ou no mundo (e talvez as posições dos outros). As “recompensas” ou “punições” por se aproximar ou desviar dos picos de uma hierarquia são, em primeira análise, efeitos psicológicos reflexivos, de acordo com a luz positiva ou negativa que o indivíduo joga sobre si mesmo ao observar o próprio estado em que se encontra em relação aos estados que poderia estar ocupando. Sob esta ótica, infelizmente, chegamos à conclusão forçosa de que todas as decisões de um indivíduo são guiadas por algum sentido de objetivo. Este percalço não deve, entretanto, nos prejudicar muito, se formos cautelosos o suficiente para somente aplicar este modelo quando estivermos estudando processos de decisão e de pensamento adequados ao presente contexto.


O que leva uma pessoa a desenvolver certas crenças e juízos não pertence ao escopo deste texto, porém podemos dizer que a personalidade e a memória estão profundamente envolvidas. Ambas se moldam com o tempo, e em certa medida se metamorfoseiam. Crenças e juízos que uma pessoa adota, ou seja, hierarquias, podem ser editadas ou substituídas num processo de aprendizado. Frequentemente, quando seguimos numa trajetória majoritariamente “positiva” (com relação à uma hierarquia), não somos convidados a rever nossas crenças e juízos, apesar de que isto ainda é possível. Esta intuição foi exposta no processo de demonstração do teorema, onde escolhemos por manter uma mesma hierarquia enquanto houvesse um diferencial positivo na transição para um estado futuro. Entretanto, quando seguimos uma trajetória “negativa”, somos convidados a rever nossas crenças e juízos, de modo a escolher uma perspectiva, uma hierarquia, que nos guie para uma trajetória que nos tire da derrocada e volte a nos elevar. Também a demonstração do teorema nos fornece essa intuição. Na verdade, essa é uma noção bem conhecida no senso comum, de que é mais fácil tirarmos aprendizado dos nossos erros do que dos nossos acertos. No caso, o aprendizado consiste de alterar nossos modelos mentais, ao invés de mantê-los estagnados. Porém, é muito frequente que as pessoas sintam dificuldade de acreditar na existência de uma trajetória positiva. Este pessimismo dificulta muito o progresso de certas pessoas quando estas estão passando por períodos conturbados e de reavaliação de suas crenças e valores. Muitas vezes, esse pessimismo leva ao desespero e à vacuidade, devido à inabilidade de selecionar novas crenças e valores. A utilidade deste teorema vem justamente em atacar esse pessimismo com uma prova objetiva de que, face à um momento difícil e delicado da vida, é sempre possível reavaliar a situação de forma se extrair algum aprendizado que leve, novamente, à uma trajetória positiva no sentido de superar os atuais desafios. Assim, ele constitui uma ferramenta potencialmente poderosa contra o pessimismo.

A segunda parte do teorema diz que uma nova trajetória positiva possui uma função de hierarquia "suave", ou seja, o processo de recuperação de um momento difícil, de aprendizado ou de cura, é um processo gradativo. Mesmo que uma pessoa tome decisões impulsivas e drásticas, de acordo com o modelo construído, a qualidade dos seus estados muda sempre de forma gradativa, nunca acompanhando um ritmo demasiadamente acelerado de tomada de decisão. Modelos mentais que levem em conta essa sabedoria podem levar a um processo de cura mais simples e com menos percalços.

Como vantagem adicional, este modelo não se vale de nenhuma crença metafísica ou religiosa, ou de filosofias ou correntes de pensamento. Ele se vale apenas de axiomas e suposições aliados à argumentação lógica e pensamento matemático para extrair consequências amorais, de um ponto de vista indiferente, mas não menos útil, ao ser humano, de modo que possa ser evidente à pessoas de qualquer orientação e não sofra com preconceito por parte de doutrinas particulares.