O que vem a seguir não se intenciona a ser representativo de nenhum outro vegetariano.
Como todo vegetariano, sou sempre perguntado o por quê disso. Eu geralmente digo algo como "não quero ser uma pessoa violenta", mas sinto que os indagadores não entendem por que seria preciso parar de comer carne para deixar de ser violento.
Para demonstrar a minha ideologia de vegetarianismo, vamos fazer uma experiência clássica de imaginação. Suponha que você está num trem impossível de ser freado, cujos trilhos apresentam um desvio à frente. Cinco pessoas estão presas ao trilhos principais após o desvio. No desvio, três galinhas estão presas aos trilhos. Você tem o poder de mudar o percurso do trem e fazê-lo se direcionar ao desvio. O que você faria? Sob um certo ângulo, devido à ausência de uma terceira opção, permanecer neutro equivale a não fazer nada e permitir que o trem siga o percurso principal. Bom, eu não faria nada.
À primeira vista, minha atitude parece ridícula para a maioria das pessoas, pois elas sempre trazem suas justificativas para a ideia de que as vidas humanas merecem mais proteção que a vida das galinhas. É extremamente difícil convencer essas pessoas a examinar essas justificativas num plano neutro onde elas sejam falseáveis, tornando a discussão posterior difícil. Geralmente não é preciso chegar a esse ponto para que ambas as partes concordem em discordar.
Mas vamos suspender ainda mais as formalidades para tentar aprofundarmo-nos um pouco nesse ponto de uma maneira empática. Vamos supor outra situação, e dessa vez vamos imaginar que apresentaremos essa pergunta a uma grande população. Suponha que ao invés de galinhas, estão presos aos trilhos do desvio três homens assassinos. Sabemos que muitas pessoas responderiam que elas garantiriam que o trem seguiria o percurso do desvio. Suponha que ao invés de três assassinos, haveriam três estupradores. Algumas pessoas ainda seguiriam o desvio. Suponha agora um debochador de uma religião no desvio, e um fiel dessa religião na via principal. Ainda algumas pessoas escolheriam o desvio. Claro, cada vez mais, as pessoas que escolhem o desvio divergem da moralidade humana em seus princípios básicos. Elas são cada vez mais consideradas pessoas imorais. Mas independente de onde você se encontre nesse espectro, a pergunta que fica é: onde fica o limite, dentro deste experimento, entre uma pessoa justa e um carrasco? E quais situações apresentam escolhas mais pertinentes e mais claras do que outras?
Como vegetariano, o que proponho é desfazer essas perguntas. Não devemos nos focar em encontrar esse limite, ou justificar escolhas baseados no contexto das situações. Ao invés de encontrar esse limite analisando a moral, vamos nós mesmos definir esse limite, e para ficarmos seguros, vamos defini-lo da forma mais restrita possível: apenas o mínimo de violência possível é permissível. A ausência de violência é uma ideia sem sentido. Mas um mínimo é alcançável.
Vamos fazer listas ordenadas desses dilemas morais. A lista indica o quão imoral uma pessoa é por não permanecer neutra numa situação. A maioria das pessoas ordenariam esses dilemas morais sucessivos da seguinte forma, de moral para imoral: galinhas/humanos inocentes, assassinos/inocentes, estupradores/inocentes, debochadores/crentes. Eu mudaria essa ordem para colocar "galinhas/humanos inocentes" no final da lista, como a escolha mais imoral. Contudo, a ordem não é o mais importante! O mais importante é que a ordem não importa! O mínimo de violência pode ser definido tão pouco quanto impossível de quebrar a neutralidade em quaisquer desses casos. Muitas pessoas não conseguem definir esse mínimo como sendo tão baixo, por conta das suas justificativas para um mérito maior da vida humana. E essa é uma razão pela qual eu não nego as prerrogativas de uma pessoa de ser onívora. Penso que não posso bater na mesa e estipular quais são as justificativas mais válidas, pois isso seria abandonar a dialética, a democracia e, acima de tudo, seria outorgar o absolutismo e o antropocentrismo (a ideia de que é possível encontrar um referencial absoluto, especialmente se for centrado no humano).
Mas o mais importante nisso tudo, para mim, é esclarecer o ponto de origem da divergência, e, melhor ainda, ajudar um lado a compreender o outro e estabelecer uma conexão clara entre eles. Expondo o ponto de divergência através das justificativas para o antropocentrismo, uma pessoa pode mais facilmente examinar essas ideias e determinar se ela concorda mais com um lado ou com outro, e evoluir esse posicionamento ao longo do tempo.
Por fim, eu espero que as pessoas entendam que a motivação do meu vegetarianismo é a violência, e entendam porque comer carne seria um ato de violência (no sentido imoral da palavra). Ao mesmo tempo, caso discordem, entendam como cheguei a essa conclusão e como elas mesmas chegaram a à sua própria conclusão (porque não é todo mundo que pensa nisso, e não é todo mundo que pensa nisso direito).
domingo, 15 de novembro de 2015
segunda-feira, 4 de maio de 2015
Justiça “se e somente se” Solidariedade & Respeito à liberdade individual não garante justiça
Como se pode ter percebido, o objetivo deste texto é
argumentar a favor de uma proposição, e a partir dela tirar uma conclusão bônus
que diz respeito principalmente a lutas libertárias. Antes de tudo, precisamos
acertar as definições dos conceitos com quais estamos lidando. “Justiça” é o
conceito chave. Para ela, existem várias classes
diferentes de interpretação. Em um nível básico, “justiça” encapsula a ideia de
consistência e conduta moral. A moral impõe a justiça, e nem a moral nem a
interpretação da moral podem ser ambíguas, tratamentos baseados na moral devem
ser consistentes e respeitar precedentes. Eticamente falando, a ideia básica de
justiça é formalizada através de um “princípio de equidade”, uma definição que
pertence a uma discussão muito recente provavelmente catalisada por Herbert
Hart em 1955. Em termos sociais, práticos, ocidentais e contemporâneos,
“justiça” tem encerrado a ideia de que tratamentos ditados pela lei devem ser
proporcionais aos seus elementos motivadores. Não se trata apenas de punição, e
por isso escolhi as palavras com cautela, mas na maior parte se trata de
punição proporcional ao crime cometido (“punição” aqui pode tanto ser lida como
“consequência social” [sentido restaurativo] ou “resposta da sociedade”
[sentido punitivo]). Durante a discussão a seguir, vamos utilizar a seguinte
definição, mais próxima da ideia básica: “’Justiça’ é a qualidade de um
tratamento de preservar a consistência do sistema ético que o contextualiza”. Por
exemplo, em sociedades antigas, a ética da Lei de Talião proclamava que
tratamentos empregados por partes lesadas (ou representantes delas, ou pelo
estado) deveriam espelhar o tratamento recebido. Portanto, se por acaso uma
pessoa declarada inocente tivesse um olho arrancado, qualquer tratamento que
diferisse de retirar um olho do perpetrador seria considerado injusto sob essa
definição.
Solidariedade é uma ideia diferente, ela encapsula as ideias
de união e comunhão. A solidariedade é utilizada para capturar os fatores
motivadores de atitudes entre indivíduos, excluindo-se os motivadores que se
encerram no indivíduo (como o egoísmo e a ganância). Claro que isto não são
explicações preto no branco, mas vamos utilizar a seguinte definição de
solidariedade: “’Solidariedade’ é o conjunto de fatores motivadores de atitudes
plurais entre indivíduos que não tem como âmbito o benefício do indivíduo, ou
de um, ou de cada indivíduo, mas o benefício da pluralidade em si. ”
Necessariamente, a solidariedade conforme definida não pode ser tida como
característica intrínseca do indivíduo, ela pressupõe um nível hierárquico
superior, uma comunidade. De um modo geral, atitudes altruístas são tidas como
solidárias.
Por acaso, justiça também é um conceito que pressupõe uma
comunidade de indivíduos. Um indivíduo jamais teria a chance de ser justo caso
fosse impedido de interagir com outros indivíduos. O que ocorre na realidade é
que ao longo da história as pessoas tiveram que se preocupar com o tratamento
que receberiam de outras pessoas e os tratamentos que elas deveriam oferecer,
sempre de forma que o indivíduo preserve a si mesmo (dentro de cada
interpretação particular, claro, inclusive aquelas em que a honra do indivíduo
tem precedência sobre sua vida). Esse viés egoísta deriva do instinto natural
de autopreservação. O processo de formação de sociedades, quaisquer que sejam
suas motivações, certamente inclui a garantia de segurança do indivíduo dentro
da comunidade organizada. Com o tempo, sistemas éticos são estabelecidos para
cada sociedade enquanto ela amadurece, e esses sistemas promovem a segurança
enquanto asseguram a consistência da conduta dos indivíduos membros da
sociedade. Pois sendo as atitudes de cada indivíduo previsíveis dentro de certa
margem, um plano seguro para a conduta de cada um pode ser traçado. A justiça entra nesse contexto como a
qualidade buscada para guiar e manter esse sistema ético consistente. Note que
como a ética de cada sociedade varia histórica e geograficamente, a qualidade
de justo pode não ser preservada quando os mesmos tratamentos são analisados
por diferentes sociedades. Note também que desde os primórdios da civilização,
o fator motivador da busca pela justiça pode tanto ser de viés egoísta quanto
altruísta, mas a função desempenhada pela justiça na sociedade foi inicialmente
a de proteger os seus membros. E a segurança, um motivador do indivíduo para
ingressar na sociedade, tem um viés egoísta derivado do instinto de
autopreservação.
Contudo, esse viés egoísta é por vezes contrabalanceado com
um altruísmo, que gera atitudes solidárias. Atitudes solidárias podem ser
vistas como genuínas ou hipócritas, vivemos uma grande quantidade de
civilizações complexas, mas o fato a ser extraído é que existem motivações que
transcendem o indivíduo e colocam como alvo toda a comunidade. No entanto, a
busca histórica pela justiça, como discutido acima, vem de uma motivação de
preservação do indivíduo. Como consequência, as leis ou o sistema ético das
sociedades foram redigidas de uma maneira centrada no indivíduo e de uma
natureza caso-a-caso. Historicamente, as leis ditam os direitos e os deveres de
cada indivíduo. Em outras palavras, ainda historicamente falando, o exercício da lei,
o exercício da justiça é localizado no indivíduo pelos sistemas éticos das
sociedades. Uma consequência dessa “localidade” do exercício da lei é que os
conflitos são resolvidos isoladamente, com participação apenas das partes
envolvidas e da instância local do aparato legal que as ampara. Isso leva a uma
contextualização extremamente particular de cada conflito, o que leva o
exercício da justiça a passar por distorções entre cada resolução de conflito.
Sentenças e tratamentos variam em proporcionalidade dependendo de cada caso
específico, como consequência das diferentes subjetividades das partes
particulares envolvidas. Em sociedades não perfeitamente democráticas (ou seja,
o caso prático de sociedade ocidental), isto necessariamente leva a um
distanciamento do ideal de justiça e da quebra da consistência do sistema ético
de cada sociedade, em maior ou menor grau dependendo de fatores altamente
divergentes como fiscalização, corrupção e satisfação popular. Pode-se
argumentar que o ideal de justiça e de consistência máxima da aplicação do
sistema ético é inatingível, mas também se pode argumentar que é possível e
prático nos aproximarmos quantitativamente e significativamente do ideal de
justiça mesmo jamais o atingindo.
O problema da “localidade” do exercício da lei, eu friso
novamente, é histórico. Recentemente tem havido esforços para incluir um novo
paradigma que olha para o sistema ético em níveis hierárquicos de comunidades e
grupos. Não se trata de leis de um grupo que se aplicam a cada indivíduo, mas
leis de grupos sobre grupos interagindo com outros grupos, sem necessidade de
recorrer ao nível do indivíduo (por exemplo, leis internacionais que proíbem o
armazenamento de armas químicas). Em todo caso, voltando ao problema da
localidade, ele se concretiza como um problema não apenas ao apresentar
dificuldades ao aparato da justiça, mas mais fundamentalmente ao falhar em
motivar a busca pela justiça dentro de grandes comunidades. Em comunidades
pequenas é fácil controlar distorções, de modo que sociedades de pequeno porte
são classicamente vistas como igualitárias ou pelo menos eticamente
consistentes (por exemplo, sociedades indígenas). Mas a localização do sistema
de justiça no indivíduo acoplado ao interesse de autopreservação falha em motivar
um aparato que olhe os conflitos sociais sob a perspectiva de um nível
organizacional superior. Como cada parte envolvida está interessada em resolver
o seu próprio conflito, existe a crença de que todos os conflitos são
resolvidos através da aplicação sistemática do aparato local de justiça a cada
caso. Não surge a partir daí a motivação para a criação de um novo aparato que
analise as distorções na aplicação do sistema ético através de toda a
sociedade, ou que garanta a consistência dele.
Todavia, nós sabemos que esse problema não foi totalmente
negligenciado historicamente. Sabemos inclusive que nas últimas décadas esse
problema tem ganhado atenção muito especial, e o estado tem sido incumbido de
legislar sobre grupos e segmentos inteiros da sociedade. A motivação para essa
mudança gradual pode novamente ter ou não ter sido de natureza egoísta ou
altruísta. Mas a aplicação do aparato de justiça com motivações centradas no
indivíduo, como espero ter sido claramente demonstrado acima, sempre leva a uma
fuga da consistência do sistema ético da sociedade, por ser uma ação de âmbito
local. No sentido de realmente aproximar a sociedade do ideal de justiça e
consistência ética, o processo centrado no indivíduo (egoísta) não é
suficiente. Faz-se necessário um processo solidário em que o interesse não é o
de proteger o indivíduo, mas o de proteger uma comunidade. A justiça como
definida acima age no contexto de uma sociedade, mas permite ser aplicada a
indivíduos e encerrada neles. Desse modo, ela permite a localidade do aparato
de justiça, mas falha em motivar um aparato de fiscalização que garanta a
consistência do sistema ético através da sociedade. Já a solidariedade
pressupõe um esforço conjunto. Quaisquer sejam as motivações, a solidariedade
caracteriza um processo que precisa levar em conta um grupo de indivíduos e
suas interações, sem poder reduzir o grupo a cada membro. Neste sentido, “leis”
solidárias são fortemente motivadas a observar todo o aparato de justiça e
garantir a consistência através de todos os julgamentos, efetivamente
aproximando a sociedade do ideal de justiça e consistência ética.
De posse dessas conclusões, podemos tentar imaginar os
cenários que levaram os ancestrais da nossa espécie à sociedade contemporânea,
no contexto da justiça. Na época dos nômades, em comunidades pequenas, o
instinto de sobrevivência era de importância sobremaneira. Além disso, era
fácil manter o controle da conduta de cada indivíduo, já que os grupos possuíam
tamanhos gerenciáveis. Em contrapartida, grupos diferentes não possuíam
motivações para interferir no processo de justiça de outros grupos, e “guerras”
por recursos podiam ser travadas. Com o advento do sedentarismo e do comércio
sociedades diferentes tiveram de estabelecer acordos de respeito e tratamento
justo. Mais além, na possibilidade de perder o benefício do comércio caso uma
sociedade fosse prejudicada, outra sociedade se dispunha a protegê-la e
ajudá-la de diversas formas. Com a globalização e após incontáveis conflitos
violentos, as sociedades se aperceberam da necessidade de legislar sobre
segmentos da população humana que transcendem o indivíduo e a soberania de
povos e nações. Entre os esforços advindos dessa constatação, temos a
Declaração Universal dos Direitos Humanos, por exemplo, mas também temos
tratados de comércio internacionais e tratados sobre conflitos bélicos. Muito
do que é pertinente a este texto parece dialogar com o debate sobre as
diferenças entre o “altruísmo” e o “egoísmo”, entretanto, ressalto que a
conclusão desse debate paralelo não é relevante para a presente discussão.
Solidariedade e Justiça como definidas aqui não dependem das motivações que
levam a transformações sociais, elas descrevem o processo que vem após. A
solidariedade, quer tenha raiz psicológica no egoísmo ou não, é um processo que
envolve ações descentralizadas do indivíduo, e essas ações são essenciais para
a aproximação da sociedade de um ideal de justiça e ética. As várias
legislações internacionais que foram passadas nas várias décadas recentes podem
ter motivações das mais diversas, mas o processo de aplicação do aparato de
justiça que as invoca é “solidário” de acordo com a definição aqui adotada.
Como corolário desta conclusão, fica novamente a conclusão de que o aparato de
justiça centrado no indivíduo não é capaz de garantir a justiça como
consistência na aplicação da ética de uma sociedade. O respeito à liberdade de
cada indivíduo não garante que no caso geral todos os indivíduos sejam
respeitados, pois distorções desses conceitos são possíveis dentro de cada
julgamento. É preciso legislar sobre organizações superiores em complexidade a
indivíduos para garantir que as liberdades previstas no sistema ético em
questão sejam preservadas consistentemente através de toda a sociedade.
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