segunda-feira, 4 de maio de 2015

Justiça “se e somente se” Solidariedade & Respeito à liberdade individual não garante justiça

Como se pode ter percebido, o objetivo deste texto é argumentar a favor de uma proposição, e a partir dela tirar uma conclusão bônus que diz respeito principalmente a lutas libertárias. Antes de tudo, precisamos acertar as definições dos conceitos com quais estamos lidando. “Justiça” é o conceito chave. Para ela, existem várias classes diferentes de interpretação. Em um nível básico, “justiça” encapsula a ideia de consistência e conduta moral. A moral impõe a justiça, e nem a moral nem a interpretação da moral podem ser ambíguas, tratamentos baseados na moral devem ser consistentes e respeitar precedentes. Eticamente falando, a ideia básica de justiça é formalizada através de um “princípio de equidade”, uma definição que pertence a uma discussão muito recente provavelmente catalisada por Herbert Hart em 1955. Em termos sociais, práticos, ocidentais e contemporâneos, “justiça” tem encerrado a ideia de que tratamentos ditados pela lei devem ser proporcionais aos seus elementos motivadores. Não se trata apenas de punição, e por isso escolhi as palavras com cautela, mas na maior parte se trata de punição proporcional ao crime cometido (“punição” aqui pode tanto ser lida como “consequência social” [sentido restaurativo] ou “resposta da sociedade” [sentido punitivo]). Durante a discussão a seguir, vamos utilizar a seguinte definição, mais próxima da ideia básica: “’Justiça’ é a qualidade de um tratamento de preservar a consistência do sistema ético que o contextualiza”. Por exemplo, em sociedades antigas, a ética da Lei de Talião proclamava que tratamentos empregados por partes lesadas (ou representantes delas, ou pelo estado) deveriam espelhar o tratamento recebido. Portanto, se por acaso uma pessoa declarada inocente tivesse um olho arrancado, qualquer tratamento que diferisse de retirar um olho do perpetrador seria considerado injusto sob essa definição. 

Solidariedade é uma ideia diferente, ela encapsula as ideias de união e comunhão. A solidariedade é utilizada para capturar os fatores motivadores de atitudes entre indivíduos, excluindo-se os motivadores que se encerram no indivíduo (como o egoísmo e a ganância). Claro que isto não são explicações preto no branco, mas vamos utilizar a seguinte definição de solidariedade: “’Solidariedade’ é o conjunto de fatores motivadores de atitudes plurais entre indivíduos que não tem como âmbito o benefício do indivíduo, ou de um, ou de cada indivíduo, mas o benefício da pluralidade em si. ” Necessariamente, a solidariedade conforme definida não pode ser tida como característica intrínseca do indivíduo, ela pressupõe um nível hierárquico superior, uma comunidade. De um modo geral, atitudes altruístas são tidas como solidárias.

Por acaso, justiça também é um conceito que pressupõe uma comunidade de indivíduos. Um indivíduo jamais teria a chance de ser justo caso fosse impedido de interagir com outros indivíduos. O que ocorre na realidade é que ao longo da história as pessoas tiveram que se preocupar com o tratamento que receberiam de outras pessoas e os tratamentos que elas deveriam oferecer, sempre de forma que o indivíduo preserve a si mesmo (dentro de cada interpretação particular, claro, inclusive aquelas em que a honra do indivíduo tem precedência sobre sua vida). Esse viés egoísta deriva do instinto natural de autopreservação. O processo de formação de sociedades, quaisquer que sejam suas motivações, certamente inclui a garantia de segurança do indivíduo dentro da comunidade organizada. Com o tempo, sistemas éticos são estabelecidos para cada sociedade enquanto ela amadurece, e esses sistemas promovem a segurança enquanto asseguram a consistência da conduta dos indivíduos membros da sociedade. Pois sendo as atitudes de cada indivíduo previsíveis dentro de certa margem, um plano seguro para a conduta de cada um pode ser traçado.  A justiça entra nesse contexto como a qualidade buscada para guiar e manter esse sistema ético consistente. Note que como a ética de cada sociedade varia histórica e geograficamente, a qualidade de justo pode não ser preservada quando os mesmos tratamentos são analisados por diferentes sociedades. Note também que desde os primórdios da civilização, o fator motivador da busca pela justiça pode tanto ser de viés egoísta quanto altruísta, mas a função desempenhada pela justiça na sociedade foi inicialmente a de proteger os seus membros. E a segurança, um motivador do indivíduo para ingressar na sociedade, tem um viés egoísta derivado do instinto de autopreservação. 

Contudo, esse viés egoísta é por vezes contrabalanceado com um altruísmo, que gera atitudes solidárias. Atitudes solidárias podem ser vistas como genuínas ou hipócritas, vivemos uma grande quantidade de civilizações complexas, mas o fato a ser extraído é que existem motivações que transcendem o indivíduo e colocam como alvo toda a comunidade. No entanto, a busca histórica pela justiça, como discutido acima, vem de uma motivação de preservação do indivíduo. Como consequência, as leis ou o sistema ético das sociedades foram redigidas de uma maneira centrada no indivíduo e de uma natureza caso-a-caso. Historicamente, as leis ditam os direitos e os deveres de cada indivíduo. Em outras palavras, ainda historicamente falando, o exercício da lei, o exercício da justiça é localizado no indivíduo pelos sistemas éticos das sociedades. Uma consequência dessa “localidade” do exercício da lei é que os conflitos são resolvidos isoladamente, com participação apenas das partes envolvidas e da instância local do aparato legal que as ampara. Isso leva a uma contextualização extremamente particular de cada conflito, o que leva o exercício da justiça a passar por distorções entre cada resolução de conflito. Sentenças e tratamentos variam em proporcionalidade dependendo de cada caso específico, como consequência das diferentes subjetividades das partes particulares envolvidas. Em sociedades não perfeitamente democráticas (ou seja, o caso prático de sociedade ocidental), isto necessariamente leva a um distanciamento do ideal de justiça e da quebra da consistência do sistema ético de cada sociedade, em maior ou menor grau dependendo de fatores altamente divergentes como fiscalização, corrupção e satisfação popular. Pode-se argumentar que o ideal de justiça e de consistência máxima da aplicação do sistema ético é inatingível, mas também se pode argumentar que é possível e prático nos aproximarmos quantitativamente e significativamente do ideal de justiça mesmo jamais o atingindo. 

O problema da “localidade” do exercício da lei, eu friso novamente, é histórico. Recentemente tem havido esforços para incluir um novo paradigma que olha para o sistema ético em níveis hierárquicos de comunidades e grupos. Não se trata de leis de um grupo que se aplicam a cada indivíduo, mas leis de grupos sobre grupos interagindo com outros grupos, sem necessidade de recorrer ao nível do indivíduo (por exemplo, leis internacionais que proíbem o armazenamento de armas químicas). Em todo caso, voltando ao problema da localidade, ele se concretiza como um problema não apenas ao apresentar dificuldades ao aparato da justiça, mas mais fundamentalmente ao falhar em motivar a busca pela justiça dentro de grandes comunidades. Em comunidades pequenas é fácil controlar distorções, de modo que sociedades de pequeno porte são classicamente vistas como igualitárias ou pelo menos eticamente consistentes (por exemplo, sociedades indígenas). Mas a localização do sistema de justiça no indivíduo acoplado ao interesse de autopreservação falha em motivar um aparato que olhe os conflitos sociais sob a perspectiva de um nível organizacional superior. Como cada parte envolvida está interessada em resolver o seu próprio conflito, existe a crença de que todos os conflitos são resolvidos através da aplicação sistemática do aparato local de justiça a cada caso. Não surge a partir daí a motivação para a criação de um novo aparato que analise as distorções na aplicação do sistema ético através de toda a sociedade, ou que garanta a consistência dele. 

Todavia, nós sabemos que esse problema não foi totalmente negligenciado historicamente. Sabemos inclusive que nas últimas décadas esse problema tem ganhado atenção muito especial, e o estado tem sido incumbido de legislar sobre grupos e segmentos inteiros da sociedade. A motivação para essa mudança gradual pode novamente ter ou não ter sido de natureza egoísta ou altruísta. Mas a aplicação do aparato de justiça com motivações centradas no indivíduo, como espero ter sido claramente demonstrado acima, sempre leva a uma fuga da consistência do sistema ético da sociedade, por ser uma ação de âmbito local. No sentido de realmente aproximar a sociedade do ideal de justiça e consistência ética, o processo centrado no indivíduo (egoísta) não é suficiente. Faz-se necessário um processo solidário em que o interesse não é o de proteger o indivíduo, mas o de proteger uma comunidade. A justiça como definida acima age no contexto de uma sociedade, mas permite ser aplicada a indivíduos e encerrada neles. Desse modo, ela permite a localidade do aparato de justiça, mas falha em motivar um aparato de fiscalização que garanta a consistência do sistema ético através da sociedade. Já a solidariedade pressupõe um esforço conjunto. Quaisquer sejam as motivações, a solidariedade caracteriza um processo que precisa levar em conta um grupo de indivíduos e suas interações, sem poder reduzir o grupo a cada membro. Neste sentido, “leis” solidárias são fortemente motivadas a observar todo o aparato de justiça e garantir a consistência através de todos os julgamentos, efetivamente aproximando a sociedade do ideal de justiça e consistência ética. 

De posse dessas conclusões, podemos tentar imaginar os cenários que levaram os ancestrais da nossa espécie à sociedade contemporânea, no contexto da justiça. Na época dos nômades, em comunidades pequenas, o instinto de sobrevivência era de importância sobremaneira. Além disso, era fácil manter o controle da conduta de cada indivíduo, já que os grupos possuíam tamanhos gerenciáveis. Em contrapartida, grupos diferentes não possuíam motivações para interferir no processo de justiça de outros grupos, e “guerras” por recursos podiam ser travadas. Com o advento do sedentarismo e do comércio sociedades diferentes tiveram de estabelecer acordos de respeito e tratamento justo. Mais além, na possibilidade de perder o benefício do comércio caso uma sociedade fosse prejudicada, outra sociedade se dispunha a protegê-la e ajudá-la de diversas formas. Com a globalização e após incontáveis conflitos violentos, as sociedades se aperceberam da necessidade de legislar sobre segmentos da população humana que transcendem o indivíduo e a soberania de povos e nações. Entre os esforços advindos dessa constatação, temos a Declaração Universal dos Direitos Humanos, por exemplo, mas também temos tratados de comércio internacionais e tratados sobre conflitos bélicos. Muito do que é pertinente a este texto parece dialogar com o debate sobre as diferenças entre o “altruísmo” e o “egoísmo”, entretanto, ressalto que a conclusão desse debate paralelo não é relevante para a presente discussão. Solidariedade e Justiça como definidas aqui não dependem das motivações que levam a transformações sociais, elas descrevem o processo que vem após. A solidariedade, quer tenha raiz psicológica no egoísmo ou não, é um processo que envolve ações descentralizadas do indivíduo, e essas ações são essenciais para a aproximação da sociedade de um ideal de justiça e ética. As várias legislações internacionais que foram passadas nas várias décadas recentes podem ter motivações das mais diversas, mas o processo de aplicação do aparato de justiça que as invoca é “solidário” de acordo com a definição aqui adotada. Como corolário desta conclusão, fica novamente a conclusão de que o aparato de justiça centrado no indivíduo não é capaz de garantir a justiça como consistência na aplicação da ética de uma sociedade. O respeito à liberdade de cada indivíduo não garante que no caso geral todos os indivíduos sejam respeitados, pois distorções desses conceitos são possíveis dentro de cada julgamento. É preciso legislar sobre organizações superiores em complexidade a indivíduos para garantir que as liberdades previstas no sistema ético em questão sejam preservadas consistentemente através de toda a sociedade.

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