Em seu livro “An
Introduction to Information Theory: Symbols, Signals and Noise”,
John Pierce discorre sobre o processo de especulação científica
que precede esforços de desenvolvimento de teorias rigorosas em
áreas jovens da ciência. A essa especulação ele chama “ignorância
científica” e a diferencia da ignorância leiga. A ignorância
científica seria a especulação que o cientista faz sobre o que ele
acredita que possa vir a ser conhecimento científico de fato. Ela
refletiria as esperanças e a motivação que o pesquisador tem em
buscar um resultado desejado, mas que é ainda inalcançável dado o
estado presente do conhecimento. Ela diferiria da ignorância leiga
no que se baseia em fatos científicos e é capaz de direcionar o
processo rigoroso do método científico à medida que avanços são
feitos no determinado campo em que ela existe. Em “General Systems
Theory”, Ludwig von Bertalanffy argumenta que modelos
não-matemáticos são importantes, mesmo que pequem no caráter
quantitativo e em seu poder analítico, pois, em épocas em que não
há embasamento teórico suficiente para descrever precisa e
rigorosamente um sistema, modelos “grosseiros” descritos em
linguagem ordinária são o melhor recurso para esclarecer novos
aspectos antes despercebidos e para preparar terreno para algoritmos
matemáticos que forneçam descrições suficientemente precisas.
Esses modelos são particularmente importantes quando comparados com
modelos matemáticos que incorporem as restrições pertinentes de
uma época incapaz de analisar o sistema em questão.
Essa ignorância científica
é o que vou tentar aqui, ao apresentar não um modelo grosseiro, mas
uma idéia em que basear um possível modelo para descrever a vida em
termos físicos e quantitativos. Não há atualmente uma definição
estrita sobre a vida e a natureza com que esse fenômeno se
manifesta. Não há também nenhum artefato teórico para estabelecer
uma ligação entre a vida e o corpo teórico que compõe a ciência
atual. É inegável a influência que organismos vivos exercem sobre
os sistemas que estudamos. Tentamos estudar os organismos vivos com
os nossos conjuntos de conhecimentos físicos, matemáticos,
químicos, biológicos, sistêmicos etc, tentamos aperfeiçoar nossos
modelos mecanísticos para prever com mais precisão o comportamento
e destino desses organismos e de seu ambiente e assim julgarmos
conhecê-los mais a fundo. Conservamos as óticas cibernética,
dinâmica, homeostática e heterostática, sem tentarmos expandi-las,
não lhes conferindo a generalidade necessária para descrever
adequadamente sistemas que consistam de organismos vivos.
A expansão que proponho é
descrever a vida como uma propriedade física de sistemas definidos
(ou não-arbitrários). A ponte entre a teoria física e a
inexistente teoria da vida é a interação entre a tão chamada
"matéria bruta" e a "matéria orgânica". Se
tomamos um organismo vivo como um sistema aberto, podemos em
princípio conhecer seu conteúdo energético total em um instante
qualquer. Ao descrever o que afeta a energia interna de um organismo,
devemos levar em consideração a propriedade "viva" do
organismo, de maneira totalmente quantitativa. O caráter "vivo"
de um organismo vivo, no que quer que consista, existe no mundo
físico e portanto deve ser compatível com ele. Em outras palavras,
não deve em hipótese alguma violar qualquer lei científica
estabelecida, e se aparentar violar, nosso modelo físico atual é
que necessitará ser modificado para abrigar as características que
a nova "teoria da vida" requeira. Isso requer uma
explicação exata do que seja a "vida" em si. Isso não é
o que venho fornecer, tanto quanto não pretendo explicar a origem da
força gravitacional ou da força elétrica. O que venho é sugerir
que admitamos uma nova propriedade física da matéria, ainda
inexplicável. A vida teria sua origem numa entidade física,
digamos, por exemplo, uma partícula, provavelmente tão distribuída
em nosso universo quanto sabemos que são distribuídas partículas e
ondas. Assim sendo, mesmo sistemas desprovidos de organismos vivos
conteriam um teor de vida quantificável. A vida seria uma
propriedade não mais exclusiva de sistemas considerados organismos
vivos.
A questão lógica que segue
é: por que não observamos esse conteúdo vivo em sistemas compostos
exclusivamente de "matéria bruta"? Minha opinião é de
que, apesar de a vida ser em princípio "onipresente" (ou,
melhor dizendo, distribuída de maneira relativamente uniforme), o
conteúdo de vida é evidenciado em sistemas complexos. Se fôssemos
dotados de métodos analíticos apropriados, poderíamos talvez
mensurar o teor de vida de sistemas inorgânicos, como pedras, rios e
estrelas, mas a olho nu e dentro do paradigma em que nos encontramos,
somos capazes de enxergar vida apenas em sistemas que possuam
complexidade suficiente. Explico com uma analogia: a carga elétrica
é uma propriedade fundamental da matéria. Praticamente toda a
matéria ao nosso redor é dotada de propriedades elétricas, e no
entanto dificilmente somos capazes de notar esse caráter. Apenas
somos capazes de perceber propriedades eletromagnéticas da matéria
quando os sistemas que observamos exibem certos padrões, por
exemplo, orientações paralelas de spins
de elétrons em orbitais externos ou o movimento massivo de cargas de
forma unidirecional. O comportamento coletivo de muitas partes
permite que a manifestação da propriedade elétrica do sistema
estudado seja observada e quantificada. Da mesma forma a vida é
observada através da interação de muitas partes, e a minha
sugestão é que a chave para uma interação que amplifique o nosso
poder de detecção da vida seja a complexidade.
Sistemas
moleculares são totalmente descritos por nós como autômatos. No
entanto, tendemos a aceitar que a vida terrestre teve sua origem em
sistemas de nível apenas molecular (por exemplo, o mundo de RNA).
Tentamos aplicar a Teoria dos Autômatos a células inteiras já que
sentimos que células não estão distantes o suficiente de sistemas
moleculares. Ainda não parecemos capazes de perceber o caráter
espontâneo da vida em sistemas dessa complexidade, mas em sistemas
ainda mais complexos a Cibernética, a Teoria dos Autômatos e a
Dinâmica de Sistemas falham em capturar características muitos
evidentes e peculiares para nós. Não é necessário dizer que essas
teorias "falham", se pensarmos que elas estão apenas
incompletas para descrever organismos vivos. Mas mesmo que elas sejam
expandidas, o caráter filosófico de "entidades
auto-regulatórias" provavelmente passará por uma mudança
irreversível.
Neste
ponto, sinto que apresentei um argumento satisfatório para convencer
de que é possível de fato conhecer organismos vivos, além de
delinear as mudanças necessárias na teoria física e, com
esperança, inspirar a busca por abordagens que visem averiguar esta
hipótese. Existem implicações menos imediatas desse pensamento.
Pensemos no que ocorre quando uma quantidade massiva de
matéria é aglomerada em uma certa região, uma estrela, por
exemplo. Uma estrela é dotada de um campo gravitacional
magnificamente forte. Objetos ainda mais massivos, como buracos
negros, em seu âmago chegam a nos fazer duvidar da validade dos
nossos conhecimentos físicos. Por outro lado, quantidades massivas
de cargas em movimento, como o núcleo externo (líquido) da Terra,
assim como o interior do Sol e as suas erupções, dão origem a
campos eletromagnéticos extremamente potentes. Seguindo a mesma
lógica, podemos nos perguntar o que aconteceria caso houvesse um
sistema extremamente massivo, mas complexo o suficiente para
manifestar vida como ela é atualmente observável por nós. O que
seria de um objeto com poder semelhante ao de um buraco negro ou uma
estrela, mas com inteligência? E o que seria de nós caso
conseguíssemos desenvolver tal entidade num futuro longíquo? Após
essas considerações eu não estou mais tão convencido de que a
mitologia grega é tão mitologia quanto nos gabamos de considerar
que ela seja.
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