O que é o vegetarianismo para mim
Definições
O vegetarianismo é um movimento coletivista que visa a mitigação da violência em todas as suas formas. Ele se distingue de muitos outros movimentos coletivistas no que possui um escopo universal, ao se aplicar à todos os seres, e também no que não tipifica a violência a ser combatida, ou seja, não aplica reducionismo à sua filosofia ética. Entretanto, este objetivo de mitigação da violência é pautado por uma ética particular, que em si é mais fundamental que qualquer movimento, e que tem como ramo principal uma ideologia que também é chamada pelo termo vegetarianismo. O movimento social, a ética de base e a ideologia devem ser claramente diferenciadas, mesmo que culturalmente sejam confundidas pelo uso dos mesmos termos.
Cada vegetariano ou pró-vegetariano possui alguma ética particular que norteia sua decisão de adotar o estilo de vida vegetariano, ou o posicionamento político vegetariano, e durante sua atuação social adere à preceitos comuns ao coletivo que vão acabar formando uma ideologia. Assim como existem muitas estirpes de feminismo, por exemplo, existem muitas estirpes de vegetarianismo, cada uma pautada por uma ideologia agregada coletivamente. Os indivíduos que aderem a cada ideologia, entretanto, o fazem de acordo com sua ética particular.
O niilismo otimista
A moral, o significado, a paz, todos esses aspectos da vida humana e sua estrutura social são geralmente tidos como fruto de doutrinas ou ideologias filosóficas, metafísicas ou teológicas. Por isso, o senso comum enxerga uma abrupta distinção entre o mundo observável e o ideal humano. O mundo observável englobaria os aspectos físicos da realidade, a natureza, e é um lugar onde todos os fenômenos são determinísticos, guiados por pura causa e efeito, onde não existe teleologia ou finalidade. O ideal humano seria um plano onde as emoções tem proeminência e onde os fenômenos são guiados não por pura causa e efeito, mas de acordo com alguma finalidade ou teleologia. É o plano onde habita a moral, as crenças, o sentido da vida, e onde o ser humano pode construir estruturas artificiais, como honra, orgulho nacional e tradições.
Eu sou um niilista, por vezes um niilista otimista. Esta perspectiva rejeita o ideal humano como realidade, e também todos os referenciais absolutos sobre os quais se poderia estabelecer ideais. Por analogia, é possível escolher o centro da Terra como referencial absoluto de distâncias no universo, de maneira arbitrária. Isto é muitas vezes feito de forma conveniente em várias aplicações de engenharia aeroespacial e astronomia. Porém, princípios físicos e até matemáticos rejeitam referenciais absolutos, de modo que a noção de “centro” do universo não tem significado. Isto não muda o fato de que problemas particulares necessitam de referenciais arbitrários determinados, e de que é possível adotar estes referenciais e estabelecer estruturas baseados neles. A abolição de um referencial absoluto para o espaço (geocentrismo e heliocentrismo) no início da era moderna foi um choque existencialista muito grande para a sociedade na época, porém a liberdade intelectual que ela trouxe permitiu um bem-estar existencial muito maior, ao nos aproximar muito mais de uma posição firme sobre o nosso lugar no universo.
A não-existência de referenciais absolutos para ideais humanos tem um efeito libertador muito similar. Existe, obviamente, uma troca: se os referenciais absolutos oprimem o indivíduo a seguir as doutrinas vigentes, eles aproximam o indivíduo da origem do seu existencialismo, fornecendo respostas muitos mais curtas, simples e completas. A abolição de referenciais absolutos liberta o indivíduo para buscar um existencialismo perfeitamente adequado à sua subjetividade, porém o distancia da origem desse existencialismo, pondo em dúvida a capacidade do indivíduo de encontrar significado num terreno de ideias que pode ser vasto, vazio, confuso e caótico. Essa troca, no entanto, me parece essencial, do ponto de vista de desenvolvimento humano. Essa é a única forma de assegurar a busca pelo conhecimento pautada na aproximação da verdade, ao invés de um mero processo criativo baseado em axiomas e dogmas arbitrários.
Passos axiomáticos para uma ética de igualdade
É importante reconhecer que o comportamento do indivíduo e seu modo de pensar não deve ser regido estritamente pela lógica e pela racionalidade. É preciso lembrar que a lógica é apenas uma ferramenta, um dispositivo abstrato, e não um princípio divino capaz de soprar vida em objetos inanimados. Ela pode ser utilizada para estabelecer causa e efeito, mas não é capaz de iniciar a cadeia de causa e efeito. Qual seria esse princípio, esse fenômeno, é um questionamento cuja resposta poderia levar à segredos por trás da consciência, a senciência e a própria existência do universo. Contudo, essa resposta poderia ainda não levar, muito provavelmente, à conclusões morais sobre como devemos nos comportar e como devemos estimar os objetos à nossa volta. Para isso devemos nos voltar a nós mesmos. Seres humanos são objetos sofisticados e principalmente reais, diferentemente de modelos abstratos e matemáticos de átomos, buracos negros e planetas. Não podemos ser interpretados e nos interpretarmos baseando-nos somente na lógica e na matemática, na ausência total de referenciais absolutos, pois habitamos um nível de complexidade que requer um arcabouço teórico muito mais amplo e poderoso, e que até o momento possui muitos aspectos inacessíveis para nós em termos de conhecimento. Mas, para simplificar esse esforço de interpretação, vou eleger os aspectos biológicos e neurológicos do ser humano para ser o alvo do meu estudo sobre ética, por serem os mais simples possíveis que não sejam arcabouços teóricos puramente matemáticos, como a física e a química.
Trocando em miúdos o parágrafo anterior, o ser humano não é um mero computador – animado, porém desprovido de senciência. Não surgimos de uma cadeia de eventos puramente determinísticos, inseridos num contexto estéril como o de órbitas de galáxias e de sistemas estelares. O ser humano é um processo probabilístico contínuo que se encaixa dentro de um nicho específico e molda esse nicho para si, numa sequência inexorável de transformação constante. Diferentemente de objetos inorgânicos, como pedras, estrelas e buracos negros, o ser humano tem a necessidade fundamental de respeitar o seu nicho ecológico na hora de determinar o seu comportamento, ou morrerá.
Biologicamente falando, o ser humano é uma espécie altamente social. Neurologicamente falando, o humano tem a necessidade de contato social, principalmente com a própria espécie, e é dotado de habilidades e capacidades sociais muito desenvolvidas, como a empatia. Esta habilidade é essencial para espécies que formam sociedades pacíficas (entre si), pois ela permite a colaboração mútua de indivíduos e dá muito mais estabilidade a contratos sociais. Pessoalmente, não sou especialista em ecologia, tampouco em disciplinas sociais mais avançadas (como sociologia e psicologia), porém me sinto confiante em afirmar que a humanidade almeja hoje montar uma sociedade perfeitamente pacífica. Definitivamente não foi o caso em muitas épocas do passado, porém o momento atual ressalta essa tendência mundial ganhando cada vez mais força.
Tendo isto em mente, já é possível adotar alguns axiomas morais para nortear o meu comportamento. Neurologicamente falando, é extremamente difícil distinguir o processo de senciência para a maioria das espécies sencientes. Uma evidência disso é que uma quantidade enorme de estudos neurológicos são feitos a partir de modelos animais. Outra evidência é o gradual processo evolutivo da cognição que confunde as fronteiras entre o que é a senciência de um gênero ancestral, e o que é a senciência de gêneros irmãos. Na verdade, esse argumento se estende para todas as características de um clado (todos os vertebrados terrestres podem ser considerados peixes, e todas as aves podem ser consideradas répteis). Ainda outra evidência é a noção recente de que o processo de senciência pode ser abstratizado, manipulado e reproduzido no mundo real de maneira artificial. Isto tem gerado dilemas éticos com relação à inteligência artificial e é um problema parecido com o dilema do contato com inteligências extraterrestres. Tudo isto fragiliza a posição do ser humano como um referencial central de senciência e, por conseguinte, de superioridade, porém sem inviabilizá-la.
O niilismo, por sua vez, elimina o significado absoluto das estruturas, obras, produções e capacidades humanas, pondo todo o montante da civilização humana e o que ela representa num nível que é não apenas o mesmo que o de outras espécies, mas que também é o mesmo do que estruturas formadas por objetos inanimados. Por exemplo, frases do tipo “se a humanidade fosse extinta, a Terra seguiria em frente normalmente, o universo seria o mesmo” colocam estruturas inanimadas geológicas e cosmológicas como um todo do qual a humanidade apenas participa, e que é totalmente abarcada por ele, sem poder exercer qualquer traço de influência significativa sobre ele. Nessa perspectiva, o universo não é nem mais rico nem mais pobre em decorrência da produção da Mona Lisa, da construção e pintura da Capela Sistina, da criação da linguagem falada e escrita, dos feitos de engenharia humana ou da invenção da matemática. A não existência desses feitos e fenômenos da inventividade humana não apenas seria tratada com indiferença pelo ambiente à nossa volta, como poderia ser vista como beneficial para a maioria das espécies selvagens da Terra, que em nada se beneficiam da prosperidade da sociedade humana. Isto é um espelho de como a humanidade enxerga a maioria dos efeitos provocados pela existência das espécies selvagens. Assim, o niilismo otimista reconhece a totalidade dos feitos e capacidades de uma espécie ou população como importantes apenas quando inseridos dentro do nicho ecológico ou contexto social adequado, perdendo completamente o valor ou significado quando aplicado aos nichos ou contextos sociais de outras espécies ou populações.
Uma armadilha, porém, ainda faz os seres humanos tenderem a centrar em si o referencial de senciência – o dualismo, a corrente filosófica que trata os fenômenos mentais como não-físicos. Sob muitas perspectivas dualistas, a realidade é composta de dois planos irreconciliáveis, normalmente um plano material e outro onde habitam os pensamentos. O corpo seria um veículo para a mente, enquanto que a mente possuiria características próprias no plano mental que não necessariamente correspondem às nossas expectativas baseadas na interação física e ecológica entre corpos materiais. Ao passo que ocorria o desenvolvimento científico das sociedades, pudemos perceber um enorme crescimento do materialismo no ideário popular, que é uma filosofia oposta ao dualismo. Para o materialismo, o único plano existencial é o plano material que observamos e a mente é uma parte integral do corpo, encerrada nele. Devido ao caráter empírico e autocrítico do método científico, o materialismo acaba se tornando o ponto de vista mais compatível com a ciência e, à medida que a ciência cresce e penetra a cultura, o materialismo entra em voga. Contudo, os embates metafísicos entre filosofias existenciais por definição fogem ao escrutínio da ciência, e portanto esta não consegue prover o materialismo de munição letal contra o dualismo. Assim sendo, devo me limitar a proclamar minha inclinação ao materialismo e deixar ao encargo do leitor determinar sua própria filosofia existencial. Além disso, esse cenário permitiu a prevalência do dualismo como filosofia popular até hoje. Mesmo em contextos niilistas é possível perceber uma tendência natural à abstratização da mente para um plano separado do material, uma prova disso é a seguinte citação de Shakespeare: “A vida não passa de uma sombra que caminha, um pobre ator que se pavoneia e se aflige sobre o palco - faz isso por uma hora e, depois, não se escuta mais sua voz. É uma história contada por um idiota, cheia de som e fúria e vazia de significado.” A frase é dotada de um tom niilista, mas pode-se notar que o uso de uma metáfora divide o plano material, onde a “vida” ocorre (é encenada ou gritada), do plano ideal, onde habita o pobre ator ou o idiota que relata essa vida, um plano onde, apesar de não encontramos significado, poderíamos discorrer sobre o plano da vida a partir de uma perspectiva externa.
A distinção que fiz no começo entre o mundo observável e o ideal humano, que permeia o senso comum, é uma perspectiva essencialmente dualista. Assim, o niilismo otimista rejeita o dualismo ao eliminar a necessidade de uma realidade alternativa que provenha de significado ou valor a realidade observável. Não é inconcebível para o niilismo que planos existenciais distintos e imiscíveis possam existir, porém é desencorajado que se lance mão de recursos filosóficos demasiadamente complexos para explicar fenômenos existenciais.
Desenvolvendo uma filosofia social do vegetarianismo
Estando os seres humanos tão biologicamente e neurologicamente próximos dos outros animais, e mais próximos ainda em termos de filosofia existencial do ponto de vista niilista e materialista, se torna inviável dentro deste contexto montar um ideal de hierarquia de prioridade entre seres. É preciso respeitar a noção biológica de que, num contexto de sobrevivência, cada espécie tem um papel ecológico de perpetuar a si em detrimento das outras, pois isso faz parte do nicho de cada uma. Porém, extraída do contexto puramente ecológico para o contexto urbano, a noção de sobrevivência da espécie perde sentido, pois não está em jogo. O nicho de um indivíduo dentro de uma civilização é fundamentalmente diferente do seu nicho dentro de um ambiente virgem (utilizo este termo pois ambos são, em última instância, selvagens). É muito importante que se faça essa distinção, pois este argumento embasará que não seja necessário interferir com o nicho de nenhuma outra espécie terrestre. É muito frequente o questionamento do tipo “os leões não deveriam deixar de comer outros animais?” A escolha de ética de não violência se limita a um contexto ideal de civilização e onde a sobrevivência não está em jogo. Quebradas estas duas suposições, a ética não se aplica, e portanto não é defendida a aplicação da ética por parte de nenhuma espécie que não seja a humana e por nenhum indivíduo que não faça parte daqueles inseridos em contextos urbanos.
Libertado do seu nicho predatório e inserido na civilização, o ser humano pode se dedicar a seu nicho social e montar uma sociedade utilitária, sendo o utilitarismo uma filosofia que funciona bem com o materialismo (que é muito compatível com o niilismo) e com o método científico (a ferramenta utilizada para desenvolver o arcabouço teórico da biologia e da neurociência que motivaram muitos aspectos da ética social a ser desenvolvida aqui). O tipo de utilitarismo a ser visado aqui é aquele que maximiza a igualdade e a liberdade, e que, se não leva necessariamente à felicidade, deve ao menos gerar como consequência a resolução pacífica de conflitos. O caráter quantitativo do utilitarismo permite a aproximação gradativa do ideal sem a necessidade de avaliações preto-no-branco. O ideal de igualdade sequer é possível, porém não é impossível nos aproximarmos tanto quanto pudermos dele. O primeiro passo óbvio é estipular a igualdade entre todos os indivíduos da nossa espécie. Respeitando os limites da igualdade, podemos também estipular a liberdade entre os indivíduos da nossa espécie. Além disso, um mundo de liberdades é, por implicação lógica, um mundo de direitos. Por definição, este é um mundo sem conflitos violentos, pois estes estariam violando a premissa da liberdade. Daí temos a consequência desejada da resolução pacífica de conflitos.
As diferentes implementações de soluções em prol da igualdade e da liberdade nas sociedades não são diretamente alvo de crítica por parte deste texto. Entretanto, levando em conta as bases filosóficas desenvolvidas anteriormente, do ponto de vista utilitarista, devemos tomar cuidado ao definirmos direitos e liberdades de uma forma que não seja suficientemente abstrata (ou seja, generalista). Isto é, devemos tomar cuidado para não atrelar o conceito de sujeito de direito à particularidades da espécie humana, ou mesmo qualquer outra espécie. Isto deve ser feito para evitar inconsistências que podem levar ao mau exercício da ética humana por brechas lógicas e por estabelecimento de precedentes perigosos e ruins. Antes de mais nada, devemos decidir se adotaremos um viés tirânico especista, ao priorizar sempre a nossa própria espécie em detrimento de outros seres. Isto não nos livra da tirania contra nós mesmos, pelo contrário, isto apenas normaliza essa tirania de forma mais ou menos transparente. Especismo é uma forma de discriminação baseada no pertencimento à espécies, ou, ainda de acordo com a Wikipédia, uma falha em reconhecer interesses iguais em medidas equilibradas devido às espécies das quais os indivíduos fazem parte. O cenário especista visa o pleno funcionamento da sociedade, com garantia de direitos e igualdade, com solução pacífica para conflitos dentro da sociedade, sem estender esses benefícios para nenhum indivíduo não pertencente à espécie humana. Grosso modo, podemos dizer que este é o modelo atual, pois apesar do desenvolvimento de teorias jurídicas para animais e discussões éticas sobre inteligência artificial, toda essa frente progressista ainda é bastante incipiente.
Dentro do utilitarismo proposto, com uma visão materialista e fundamentada na biologia (e de uma forma até tecnocrática), na ausência de vieses dualistas que digam respeito à alguma transcendência da mente, é muito difícil separar o sujeito de direito somente pela consciência. O ser humano não é suficientemente distante dos outros animais, e sua consciência é do mesmo tipo que as dos animais próximos, pelo menos em termos de estrutura orgânica. Podemos dizer, por exemplo, que o processo de autopercepção e autonomia de um animal dotado de sistema nervoso é fundamentalmente diferente estrutural e evolutivamente do processo de autopercepção e autonomia de uma célula. Existe um abrupto salto evolutivo entre o processo de autodeterminação de uma célula (o quer que signifique), que é baseado em estruturas moleculares, e o processo de autodeterminação de um animal, que é baseado em estruturas macroscópicas (o sistema nervoso, normalmente estruturado por várias células). Não estamos, assim, num patamar diferente dos outros animais, em termos de estrutura lógica básica da consciência, do mesmo modo que os outros animais estão para as células. Mesmo assim, alguns tentam resgatar o ser humano desse patamar de igualdade invocando referenciais morais que colocam, como dito antes, a totalidade dos feitos e capacidades da humanidade como intrinsecamente valiosa, algo que é refutado pelo niilismo ao abolir todos os referenciais absolutos.
O referencial especista é válido, não como absoluto, mas ao menos como arbitrário. Se a partir desse referencial tentamos construir uma sociedade igualitária, de direitos e de resolução pacífica de conflitos, incorremos em problemas quando entidades ou setores da sociedade passam a oprimir populações de outras espécies (a princípio animais, mas possivelmente inteligências artificiais ou extraterrestres, num futuro hipotético). Classicamente, a opressão não é sequer definida para outras espécies, mas isso é facilmente entendido atualmente como um erro conceitual, ano após ano corrigido pelos defensores dos direitos dos animais. Depois do que foi exposto até aqui, deve estar claro porque este erro conceitual surge, e porque de fato isto não é compatível com a realidade empírica. O conceito de opressão contra humanos possui um perfeito análogo quando aplicamos o mesmo processo gerador dessa opressão a um animal de outra espécie. Mesmo que nesse caso o conceito análogo não seja chamado de opressão (contra um animal) ou que não seja nem definido, ele não deixa de ser um conceito lógico perfeitamente equivalente à opressão humana dentro das premissas adotadas nesta seção. Esta perfeita analogia abre precedentes de processos opressivos contra outros animais que podem encontrar análogos em processos opressivos contra seres humanos que ainda não tenham sido tipificados, ou que sejam extremamente difíceis de tipificar mesmo após detectados, por serem tão análogos ao processo normalizado anteriormente. A maioria das consequências desse tipo não é direta, e pode conter várias camadas de nuance. Por exemplo, um tipo de opressão que pode ser normalizado é uma tolerância muito alta para o sofrimento coletivo, devida às dificuldades inerentes do gerenciamento de populações. Veja, como rejeitar um certo nível de sofrimento humano como “natural”, enquanto considerando o próprio ser humano como “natural” e tolerando um nível “natural” de sofrimento imposto às populações animais como cães e gatos de rua, animais de fazenda e de zoológicos? É óbvio que existem várias respostas diferentes e todas elas dependem de algum referencial moral arbitrário, porém algumas são melhores que outras em termos de maximizar funções utilitárias de bem estar social.
Outra consequência perversa da tirania especista numa sociedade autodeclarada pacífica e igualitária é a manutenção de tendências violentas e negligenciadoras na população, mesmo que essas características sejam suprimidas pela lei. A violência é um tipo de opressão classicamente definido apenas para humanos, mas que não apenas possui análogo perfeito aplicado contra animais (para não dizer que é o mesmo processo), como já é atualmente reconhecida mundialmente como universal. Existe um esforço, mesmo que não seja nem um pouco intencional (ocorre na verdade para fins puramente econômicos), de distanciar a população da violência contra espécies domesticadas. A carne hoje em dia não é mais percebida como parte do processo natural de sobrevivência ou como resultado da interação entre nós e outras espécies. Ela é percebida como um produto artificial, industrializado, encerrada em si mesma enquanto alimento e não pertencente a um ciclo ecológico de interação entre populações. Isto foi feito em um primeiro momento para permitir que a indústria suprisse uma demanda já muito alta e em constante ascensão, e em um segundo momento para que se potencializasse o crescimento dessa demanda, criando uma cultura de consumo da carne. Esse distanciamento entre o consumidor e a carne na gôndola do supermercado ou no menu do restaurante não distancia, entretanto, o consumidor da violência. O consumidor continua percebendo o animal como nada acima de objeto de usufruto, mesmo que de uma maneira indireta e apenas quando invocado em sua imaginação a imagem do animal na fazenda ou no ambiente selvagem. Este consumidor desenvolveu familiaridade com mecanismos de opressão contra populações inteiras baseado numa caracterização de grupo. É evidente que a diretiva biológica de pertencimento à mesma espécie é extremamente forte, e assim pode parecer que seja muito difícil quebrar esta diretiva de modo que um humano se sinta objetivamente superior a outro num nível que lhe permita uso aberto de violência contra o outro indivíduo. Mas já sabemos que isso aconteceu inúmeras vezes na nossa história, onde a caracterização de grupos era usada contra populações humanas para oprimi-las, sendo as mulheres e os negros exemplos claros de populações historicamente oprimidas, baseado na hierarquia de importância de grupos.
Uma tendência introduzida pelo movimento social para a extinção da opressão contra populações humanas foi o fim da caracterização de grupos no tocante à direitos, liberdades e violência. Diferentes grupos humanos existem, como diferentes gêneros e etnias, porém todos os indivíduos são iguais do ponto de vista democrático. Não é toa que, para muitos críticos do antropocentrismo, essa tendência deve eventualmente se esticar para grupos de indivíduos não-humanos. Enquanto o consumidor nutrir dentro de si essa cultura de caracterização de grupos em uma hierarquia de supremacia, ele cultivará uma cultura de violência naturalizada, que por mais que lhe seja vetado aplicá-la a membros da mesma espécie (“pessoas”), continua sendo uma cultura de violência naturalizada. Cria-se uma ilusão de que é ensinado o inverso de uma cultura de violência nos meios sociais humanos, seja nas escolas, na mídia, na religião ou no núcleo familiar, mas na verdade a cultura de violência ainda é ensinada e naturalizada na sociedade, apenas é exercitada de um modo velado. Os mecanismos de opressão brutal dos quais o indivíduo toma parte direta ou indiretamente podem até não ser, na maioria das vezes, voltados contra indivíduos da mesma espécie, mas eles são perfeitamente análogos daqueles que foram aplicados à populações humanas no passado. Essa opressão brutal é internalizada pelos indivíduos mesmo em períodos de paz, e situações sociais extremas ou complexas podem facilmente fazer aflorar essa brutalidade, estabelecendo precedentes de opressão difíceis de controlar.
(A esta altura, devido à minha particular escolha de palavras, é possível que alguns leitores estejam incomodados imaginando que eu esteja falando como se atualmente não houvesse opressão de grupos sociais contra outros grupos sociais. Evidentemente que de modo algum! Eu admito que estou tentando simplificar o texto ao ignorar completamente o tipo clássico de opressão social que rotineiramente discutimos, particularmente baseado na suposição de que a opressão contra populações de outros animais é de caráter mais brutal e mais emergencial. Assim, peço que o leitor seja compreensivo com a minha construção textual.)
A internalização da violência, mesmo que não reconhecida como tal, mesmo que soterrada numa cultura de paz e comprometimento social, torna as relações sociais mais voláteis. O bom funcionamento da sociedade e o respeito aos direitos e liberdades de modo democrático não depende apenas da constituição e das instituições de controle social. A cultura da sociedade e principalmente a mentalidade do indivíduo precisam estar alinhadas com a lógica do exercício democrático do convívio social. A sociedade democrática não almeja ter um histórico impecável de punições justas contra criminosos e de um funcionamento exemplar do sistema carcerário. Estas duas características são mera consequência de uma gestão honesta do sistema de justiça. A sociedade democrática almeja a virtual não-existência do crime e esvaziamento populacional do sistema carcerário como consequência de uma igualdade universal. Isto é logicamente impraticável, um dos motivos o ser humano não sendo perfeitamente racional, mas o cenário é plausível como meta. O crime ocorre não somente como fruto da desigualdade, ele também ocorre de forma espontânea quando o indivíduo nutre valores diferentes dos que a sociedade impõe e age sobre eles. No contexto da violência contra animais, o indivíduo internaliza uma violência naturalizada, que de acordo com as suposições previamente discutidas neste texto, é abstrata o suficiente para ser aplicada contra qualquer indivíduo independentemente da espécie. Duas culturas diferentes são ensinadas ao indivíduo: o respeito mútuo para com as outras pessoas, amparado na constituição e na cartilha dos direitos humanos, e a violência natural contra outros indivíduos com caráter puramente consumista. O indivíduo, embora reprimido pela sociedade, treinado para não agir sobre seus impulsos emocionais, continua sendo ensinado a ser violento, mesmo que de forma indireta.
Definições
O vegetarianismo é um movimento coletivista que visa a mitigação da violência em todas as suas formas. Ele se distingue de muitos outros movimentos coletivistas no que possui um escopo universal, ao se aplicar à todos os seres, e também no que não tipifica a violência a ser combatida, ou seja, não aplica reducionismo à sua filosofia ética. Entretanto, este objetivo de mitigação da violência é pautado por uma ética particular, que em si é mais fundamental que qualquer movimento, e que tem como ramo principal uma ideologia que também é chamada pelo termo vegetarianismo. O movimento social, a ética de base e a ideologia devem ser claramente diferenciadas, mesmo que culturalmente sejam confundidas pelo uso dos mesmos termos.
Cada vegetariano ou pró-vegetariano possui alguma ética particular que norteia sua decisão de adotar o estilo de vida vegetariano, ou o posicionamento político vegetariano, e durante sua atuação social adere à preceitos comuns ao coletivo que vão acabar formando uma ideologia. Assim como existem muitas estirpes de feminismo, por exemplo, existem muitas estirpes de vegetarianismo, cada uma pautada por uma ideologia agregada coletivamente. Os indivíduos que aderem a cada ideologia, entretanto, o fazem de acordo com sua ética particular.
O niilismo otimista
A moral, o significado, a paz, todos esses aspectos da vida humana e sua estrutura social são geralmente tidos como fruto de doutrinas ou ideologias filosóficas, metafísicas ou teológicas. Por isso, o senso comum enxerga uma abrupta distinção entre o mundo observável e o ideal humano. O mundo observável englobaria os aspectos físicos da realidade, a natureza, e é um lugar onde todos os fenômenos são determinísticos, guiados por pura causa e efeito, onde não existe teleologia ou finalidade. O ideal humano seria um plano onde as emoções tem proeminência e onde os fenômenos são guiados não por pura causa e efeito, mas de acordo com alguma finalidade ou teleologia. É o plano onde habita a moral, as crenças, o sentido da vida, e onde o ser humano pode construir estruturas artificiais, como honra, orgulho nacional e tradições.
Eu sou um niilista, por vezes um niilista otimista. Esta perspectiva rejeita o ideal humano como realidade, e também todos os referenciais absolutos sobre os quais se poderia estabelecer ideais. Por analogia, é possível escolher o centro da Terra como referencial absoluto de distâncias no universo, de maneira arbitrária. Isto é muitas vezes feito de forma conveniente em várias aplicações de engenharia aeroespacial e astronomia. Porém, princípios físicos e até matemáticos rejeitam referenciais absolutos, de modo que a noção de “centro” do universo não tem significado. Isto não muda o fato de que problemas particulares necessitam de referenciais arbitrários determinados, e de que é possível adotar estes referenciais e estabelecer estruturas baseados neles. A abolição de um referencial absoluto para o espaço (geocentrismo e heliocentrismo) no início da era moderna foi um choque existencialista muito grande para a sociedade na época, porém a liberdade intelectual que ela trouxe permitiu um bem-estar existencial muito maior, ao nos aproximar muito mais de uma posição firme sobre o nosso lugar no universo.
A não-existência de referenciais absolutos para ideais humanos tem um efeito libertador muito similar. Existe, obviamente, uma troca: se os referenciais absolutos oprimem o indivíduo a seguir as doutrinas vigentes, eles aproximam o indivíduo da origem do seu existencialismo, fornecendo respostas muitos mais curtas, simples e completas. A abolição de referenciais absolutos liberta o indivíduo para buscar um existencialismo perfeitamente adequado à sua subjetividade, porém o distancia da origem desse existencialismo, pondo em dúvida a capacidade do indivíduo de encontrar significado num terreno de ideias que pode ser vasto, vazio, confuso e caótico. Essa troca, no entanto, me parece essencial, do ponto de vista de desenvolvimento humano. Essa é a única forma de assegurar a busca pelo conhecimento pautada na aproximação da verdade, ao invés de um mero processo criativo baseado em axiomas e dogmas arbitrários.
Passos axiomáticos para uma ética de igualdade
É importante reconhecer que o comportamento do indivíduo e seu modo de pensar não deve ser regido estritamente pela lógica e pela racionalidade. É preciso lembrar que a lógica é apenas uma ferramenta, um dispositivo abstrato, e não um princípio divino capaz de soprar vida em objetos inanimados. Ela pode ser utilizada para estabelecer causa e efeito, mas não é capaz de iniciar a cadeia de causa e efeito. Qual seria esse princípio, esse fenômeno, é um questionamento cuja resposta poderia levar à segredos por trás da consciência, a senciência e a própria existência do universo. Contudo, essa resposta poderia ainda não levar, muito provavelmente, à conclusões morais sobre como devemos nos comportar e como devemos estimar os objetos à nossa volta. Para isso devemos nos voltar a nós mesmos. Seres humanos são objetos sofisticados e principalmente reais, diferentemente de modelos abstratos e matemáticos de átomos, buracos negros e planetas. Não podemos ser interpretados e nos interpretarmos baseando-nos somente na lógica e na matemática, na ausência total de referenciais absolutos, pois habitamos um nível de complexidade que requer um arcabouço teórico muito mais amplo e poderoso, e que até o momento possui muitos aspectos inacessíveis para nós em termos de conhecimento. Mas, para simplificar esse esforço de interpretação, vou eleger os aspectos biológicos e neurológicos do ser humano para ser o alvo do meu estudo sobre ética, por serem os mais simples possíveis que não sejam arcabouços teóricos puramente matemáticos, como a física e a química.
Trocando em miúdos o parágrafo anterior, o ser humano não é um mero computador – animado, porém desprovido de senciência. Não surgimos de uma cadeia de eventos puramente determinísticos, inseridos num contexto estéril como o de órbitas de galáxias e de sistemas estelares. O ser humano é um processo probabilístico contínuo que se encaixa dentro de um nicho específico e molda esse nicho para si, numa sequência inexorável de transformação constante. Diferentemente de objetos inorgânicos, como pedras, estrelas e buracos negros, o ser humano tem a necessidade fundamental de respeitar o seu nicho ecológico na hora de determinar o seu comportamento, ou morrerá.
Biologicamente falando, o ser humano é uma espécie altamente social. Neurologicamente falando, o humano tem a necessidade de contato social, principalmente com a própria espécie, e é dotado de habilidades e capacidades sociais muito desenvolvidas, como a empatia. Esta habilidade é essencial para espécies que formam sociedades pacíficas (entre si), pois ela permite a colaboração mútua de indivíduos e dá muito mais estabilidade a contratos sociais. Pessoalmente, não sou especialista em ecologia, tampouco em disciplinas sociais mais avançadas (como sociologia e psicologia), porém me sinto confiante em afirmar que a humanidade almeja hoje montar uma sociedade perfeitamente pacífica. Definitivamente não foi o caso em muitas épocas do passado, porém o momento atual ressalta essa tendência mundial ganhando cada vez mais força.
Tendo isto em mente, já é possível adotar alguns axiomas morais para nortear o meu comportamento. Neurologicamente falando, é extremamente difícil distinguir o processo de senciência para a maioria das espécies sencientes. Uma evidência disso é que uma quantidade enorme de estudos neurológicos são feitos a partir de modelos animais. Outra evidência é o gradual processo evolutivo da cognição que confunde as fronteiras entre o que é a senciência de um gênero ancestral, e o que é a senciência de gêneros irmãos. Na verdade, esse argumento se estende para todas as características de um clado (todos os vertebrados terrestres podem ser considerados peixes, e todas as aves podem ser consideradas répteis). Ainda outra evidência é a noção recente de que o processo de senciência pode ser abstratizado, manipulado e reproduzido no mundo real de maneira artificial. Isto tem gerado dilemas éticos com relação à inteligência artificial e é um problema parecido com o dilema do contato com inteligências extraterrestres. Tudo isto fragiliza a posição do ser humano como um referencial central de senciência e, por conseguinte, de superioridade, porém sem inviabilizá-la.
O niilismo, por sua vez, elimina o significado absoluto das estruturas, obras, produções e capacidades humanas, pondo todo o montante da civilização humana e o que ela representa num nível que é não apenas o mesmo que o de outras espécies, mas que também é o mesmo do que estruturas formadas por objetos inanimados. Por exemplo, frases do tipo “se a humanidade fosse extinta, a Terra seguiria em frente normalmente, o universo seria o mesmo” colocam estruturas inanimadas geológicas e cosmológicas como um todo do qual a humanidade apenas participa, e que é totalmente abarcada por ele, sem poder exercer qualquer traço de influência significativa sobre ele. Nessa perspectiva, o universo não é nem mais rico nem mais pobre em decorrência da produção da Mona Lisa, da construção e pintura da Capela Sistina, da criação da linguagem falada e escrita, dos feitos de engenharia humana ou da invenção da matemática. A não existência desses feitos e fenômenos da inventividade humana não apenas seria tratada com indiferença pelo ambiente à nossa volta, como poderia ser vista como beneficial para a maioria das espécies selvagens da Terra, que em nada se beneficiam da prosperidade da sociedade humana. Isto é um espelho de como a humanidade enxerga a maioria dos efeitos provocados pela existência das espécies selvagens. Assim, o niilismo otimista reconhece a totalidade dos feitos e capacidades de uma espécie ou população como importantes apenas quando inseridos dentro do nicho ecológico ou contexto social adequado, perdendo completamente o valor ou significado quando aplicado aos nichos ou contextos sociais de outras espécies ou populações.
Uma armadilha, porém, ainda faz os seres humanos tenderem a centrar em si o referencial de senciência – o dualismo, a corrente filosófica que trata os fenômenos mentais como não-físicos. Sob muitas perspectivas dualistas, a realidade é composta de dois planos irreconciliáveis, normalmente um plano material e outro onde habitam os pensamentos. O corpo seria um veículo para a mente, enquanto que a mente possuiria características próprias no plano mental que não necessariamente correspondem às nossas expectativas baseadas na interação física e ecológica entre corpos materiais. Ao passo que ocorria o desenvolvimento científico das sociedades, pudemos perceber um enorme crescimento do materialismo no ideário popular, que é uma filosofia oposta ao dualismo. Para o materialismo, o único plano existencial é o plano material que observamos e a mente é uma parte integral do corpo, encerrada nele. Devido ao caráter empírico e autocrítico do método científico, o materialismo acaba se tornando o ponto de vista mais compatível com a ciência e, à medida que a ciência cresce e penetra a cultura, o materialismo entra em voga. Contudo, os embates metafísicos entre filosofias existenciais por definição fogem ao escrutínio da ciência, e portanto esta não consegue prover o materialismo de munição letal contra o dualismo. Assim sendo, devo me limitar a proclamar minha inclinação ao materialismo e deixar ao encargo do leitor determinar sua própria filosofia existencial. Além disso, esse cenário permitiu a prevalência do dualismo como filosofia popular até hoje. Mesmo em contextos niilistas é possível perceber uma tendência natural à abstratização da mente para um plano separado do material, uma prova disso é a seguinte citação de Shakespeare: “A vida não passa de uma sombra que caminha, um pobre ator que se pavoneia e se aflige sobre o palco - faz isso por uma hora e, depois, não se escuta mais sua voz. É uma história contada por um idiota, cheia de som e fúria e vazia de significado.” A frase é dotada de um tom niilista, mas pode-se notar que o uso de uma metáfora divide o plano material, onde a “vida” ocorre (é encenada ou gritada), do plano ideal, onde habita o pobre ator ou o idiota que relata essa vida, um plano onde, apesar de não encontramos significado, poderíamos discorrer sobre o plano da vida a partir de uma perspectiva externa.
A distinção que fiz no começo entre o mundo observável e o ideal humano, que permeia o senso comum, é uma perspectiva essencialmente dualista. Assim, o niilismo otimista rejeita o dualismo ao eliminar a necessidade de uma realidade alternativa que provenha de significado ou valor a realidade observável. Não é inconcebível para o niilismo que planos existenciais distintos e imiscíveis possam existir, porém é desencorajado que se lance mão de recursos filosóficos demasiadamente complexos para explicar fenômenos existenciais.
Desenvolvendo uma filosofia social do vegetarianismo
Estando os seres humanos tão biologicamente e neurologicamente próximos dos outros animais, e mais próximos ainda em termos de filosofia existencial do ponto de vista niilista e materialista, se torna inviável dentro deste contexto montar um ideal de hierarquia de prioridade entre seres. É preciso respeitar a noção biológica de que, num contexto de sobrevivência, cada espécie tem um papel ecológico de perpetuar a si em detrimento das outras, pois isso faz parte do nicho de cada uma. Porém, extraída do contexto puramente ecológico para o contexto urbano, a noção de sobrevivência da espécie perde sentido, pois não está em jogo. O nicho de um indivíduo dentro de uma civilização é fundamentalmente diferente do seu nicho dentro de um ambiente virgem (utilizo este termo pois ambos são, em última instância, selvagens). É muito importante que se faça essa distinção, pois este argumento embasará que não seja necessário interferir com o nicho de nenhuma outra espécie terrestre. É muito frequente o questionamento do tipo “os leões não deveriam deixar de comer outros animais?” A escolha de ética de não violência se limita a um contexto ideal de civilização e onde a sobrevivência não está em jogo. Quebradas estas duas suposições, a ética não se aplica, e portanto não é defendida a aplicação da ética por parte de nenhuma espécie que não seja a humana e por nenhum indivíduo que não faça parte daqueles inseridos em contextos urbanos.
Libertado do seu nicho predatório e inserido na civilização, o ser humano pode se dedicar a seu nicho social e montar uma sociedade utilitária, sendo o utilitarismo uma filosofia que funciona bem com o materialismo (que é muito compatível com o niilismo) e com o método científico (a ferramenta utilizada para desenvolver o arcabouço teórico da biologia e da neurociência que motivaram muitos aspectos da ética social a ser desenvolvida aqui). O tipo de utilitarismo a ser visado aqui é aquele que maximiza a igualdade e a liberdade, e que, se não leva necessariamente à felicidade, deve ao menos gerar como consequência a resolução pacífica de conflitos. O caráter quantitativo do utilitarismo permite a aproximação gradativa do ideal sem a necessidade de avaliações preto-no-branco. O ideal de igualdade sequer é possível, porém não é impossível nos aproximarmos tanto quanto pudermos dele. O primeiro passo óbvio é estipular a igualdade entre todos os indivíduos da nossa espécie. Respeitando os limites da igualdade, podemos também estipular a liberdade entre os indivíduos da nossa espécie. Além disso, um mundo de liberdades é, por implicação lógica, um mundo de direitos. Por definição, este é um mundo sem conflitos violentos, pois estes estariam violando a premissa da liberdade. Daí temos a consequência desejada da resolução pacífica de conflitos.
As diferentes implementações de soluções em prol da igualdade e da liberdade nas sociedades não são diretamente alvo de crítica por parte deste texto. Entretanto, levando em conta as bases filosóficas desenvolvidas anteriormente, do ponto de vista utilitarista, devemos tomar cuidado ao definirmos direitos e liberdades de uma forma que não seja suficientemente abstrata (ou seja, generalista). Isto é, devemos tomar cuidado para não atrelar o conceito de sujeito de direito à particularidades da espécie humana, ou mesmo qualquer outra espécie. Isto deve ser feito para evitar inconsistências que podem levar ao mau exercício da ética humana por brechas lógicas e por estabelecimento de precedentes perigosos e ruins. Antes de mais nada, devemos decidir se adotaremos um viés tirânico especista, ao priorizar sempre a nossa própria espécie em detrimento de outros seres. Isto não nos livra da tirania contra nós mesmos, pelo contrário, isto apenas normaliza essa tirania de forma mais ou menos transparente. Especismo é uma forma de discriminação baseada no pertencimento à espécies, ou, ainda de acordo com a Wikipédia, uma falha em reconhecer interesses iguais em medidas equilibradas devido às espécies das quais os indivíduos fazem parte. O cenário especista visa o pleno funcionamento da sociedade, com garantia de direitos e igualdade, com solução pacífica para conflitos dentro da sociedade, sem estender esses benefícios para nenhum indivíduo não pertencente à espécie humana. Grosso modo, podemos dizer que este é o modelo atual, pois apesar do desenvolvimento de teorias jurídicas para animais e discussões éticas sobre inteligência artificial, toda essa frente progressista ainda é bastante incipiente.
Dentro do utilitarismo proposto, com uma visão materialista e fundamentada na biologia (e de uma forma até tecnocrática), na ausência de vieses dualistas que digam respeito à alguma transcendência da mente, é muito difícil separar o sujeito de direito somente pela consciência. O ser humano não é suficientemente distante dos outros animais, e sua consciência é do mesmo tipo que as dos animais próximos, pelo menos em termos de estrutura orgânica. Podemos dizer, por exemplo, que o processo de autopercepção e autonomia de um animal dotado de sistema nervoso é fundamentalmente diferente estrutural e evolutivamente do processo de autopercepção e autonomia de uma célula. Existe um abrupto salto evolutivo entre o processo de autodeterminação de uma célula (o quer que signifique), que é baseado em estruturas moleculares, e o processo de autodeterminação de um animal, que é baseado em estruturas macroscópicas (o sistema nervoso, normalmente estruturado por várias células). Não estamos, assim, num patamar diferente dos outros animais, em termos de estrutura lógica básica da consciência, do mesmo modo que os outros animais estão para as células. Mesmo assim, alguns tentam resgatar o ser humano desse patamar de igualdade invocando referenciais morais que colocam, como dito antes, a totalidade dos feitos e capacidades da humanidade como intrinsecamente valiosa, algo que é refutado pelo niilismo ao abolir todos os referenciais absolutos.
O referencial especista é válido, não como absoluto, mas ao menos como arbitrário. Se a partir desse referencial tentamos construir uma sociedade igualitária, de direitos e de resolução pacífica de conflitos, incorremos em problemas quando entidades ou setores da sociedade passam a oprimir populações de outras espécies (a princípio animais, mas possivelmente inteligências artificiais ou extraterrestres, num futuro hipotético). Classicamente, a opressão não é sequer definida para outras espécies, mas isso é facilmente entendido atualmente como um erro conceitual, ano após ano corrigido pelos defensores dos direitos dos animais. Depois do que foi exposto até aqui, deve estar claro porque este erro conceitual surge, e porque de fato isto não é compatível com a realidade empírica. O conceito de opressão contra humanos possui um perfeito análogo quando aplicamos o mesmo processo gerador dessa opressão a um animal de outra espécie. Mesmo que nesse caso o conceito análogo não seja chamado de opressão (contra um animal) ou que não seja nem definido, ele não deixa de ser um conceito lógico perfeitamente equivalente à opressão humana dentro das premissas adotadas nesta seção. Esta perfeita analogia abre precedentes de processos opressivos contra outros animais que podem encontrar análogos em processos opressivos contra seres humanos que ainda não tenham sido tipificados, ou que sejam extremamente difíceis de tipificar mesmo após detectados, por serem tão análogos ao processo normalizado anteriormente. A maioria das consequências desse tipo não é direta, e pode conter várias camadas de nuance. Por exemplo, um tipo de opressão que pode ser normalizado é uma tolerância muito alta para o sofrimento coletivo, devida às dificuldades inerentes do gerenciamento de populações. Veja, como rejeitar um certo nível de sofrimento humano como “natural”, enquanto considerando o próprio ser humano como “natural” e tolerando um nível “natural” de sofrimento imposto às populações animais como cães e gatos de rua, animais de fazenda e de zoológicos? É óbvio que existem várias respostas diferentes e todas elas dependem de algum referencial moral arbitrário, porém algumas são melhores que outras em termos de maximizar funções utilitárias de bem estar social.
Outra consequência perversa da tirania especista numa sociedade autodeclarada pacífica e igualitária é a manutenção de tendências violentas e negligenciadoras na população, mesmo que essas características sejam suprimidas pela lei. A violência é um tipo de opressão classicamente definido apenas para humanos, mas que não apenas possui análogo perfeito aplicado contra animais (para não dizer que é o mesmo processo), como já é atualmente reconhecida mundialmente como universal. Existe um esforço, mesmo que não seja nem um pouco intencional (ocorre na verdade para fins puramente econômicos), de distanciar a população da violência contra espécies domesticadas. A carne hoje em dia não é mais percebida como parte do processo natural de sobrevivência ou como resultado da interação entre nós e outras espécies. Ela é percebida como um produto artificial, industrializado, encerrada em si mesma enquanto alimento e não pertencente a um ciclo ecológico de interação entre populações. Isto foi feito em um primeiro momento para permitir que a indústria suprisse uma demanda já muito alta e em constante ascensão, e em um segundo momento para que se potencializasse o crescimento dessa demanda, criando uma cultura de consumo da carne. Esse distanciamento entre o consumidor e a carne na gôndola do supermercado ou no menu do restaurante não distancia, entretanto, o consumidor da violência. O consumidor continua percebendo o animal como nada acima de objeto de usufruto, mesmo que de uma maneira indireta e apenas quando invocado em sua imaginação a imagem do animal na fazenda ou no ambiente selvagem. Este consumidor desenvolveu familiaridade com mecanismos de opressão contra populações inteiras baseado numa caracterização de grupo. É evidente que a diretiva biológica de pertencimento à mesma espécie é extremamente forte, e assim pode parecer que seja muito difícil quebrar esta diretiva de modo que um humano se sinta objetivamente superior a outro num nível que lhe permita uso aberto de violência contra o outro indivíduo. Mas já sabemos que isso aconteceu inúmeras vezes na nossa história, onde a caracterização de grupos era usada contra populações humanas para oprimi-las, sendo as mulheres e os negros exemplos claros de populações historicamente oprimidas, baseado na hierarquia de importância de grupos.
Uma tendência introduzida pelo movimento social para a extinção da opressão contra populações humanas foi o fim da caracterização de grupos no tocante à direitos, liberdades e violência. Diferentes grupos humanos existem, como diferentes gêneros e etnias, porém todos os indivíduos são iguais do ponto de vista democrático. Não é toa que, para muitos críticos do antropocentrismo, essa tendência deve eventualmente se esticar para grupos de indivíduos não-humanos. Enquanto o consumidor nutrir dentro de si essa cultura de caracterização de grupos em uma hierarquia de supremacia, ele cultivará uma cultura de violência naturalizada, que por mais que lhe seja vetado aplicá-la a membros da mesma espécie (“pessoas”), continua sendo uma cultura de violência naturalizada. Cria-se uma ilusão de que é ensinado o inverso de uma cultura de violência nos meios sociais humanos, seja nas escolas, na mídia, na religião ou no núcleo familiar, mas na verdade a cultura de violência ainda é ensinada e naturalizada na sociedade, apenas é exercitada de um modo velado. Os mecanismos de opressão brutal dos quais o indivíduo toma parte direta ou indiretamente podem até não ser, na maioria das vezes, voltados contra indivíduos da mesma espécie, mas eles são perfeitamente análogos daqueles que foram aplicados à populações humanas no passado. Essa opressão brutal é internalizada pelos indivíduos mesmo em períodos de paz, e situações sociais extremas ou complexas podem facilmente fazer aflorar essa brutalidade, estabelecendo precedentes de opressão difíceis de controlar.
(A esta altura, devido à minha particular escolha de palavras, é possível que alguns leitores estejam incomodados imaginando que eu esteja falando como se atualmente não houvesse opressão de grupos sociais contra outros grupos sociais. Evidentemente que de modo algum! Eu admito que estou tentando simplificar o texto ao ignorar completamente o tipo clássico de opressão social que rotineiramente discutimos, particularmente baseado na suposição de que a opressão contra populações de outros animais é de caráter mais brutal e mais emergencial. Assim, peço que o leitor seja compreensivo com a minha construção textual.)
A internalização da violência, mesmo que não reconhecida como tal, mesmo que soterrada numa cultura de paz e comprometimento social, torna as relações sociais mais voláteis. O bom funcionamento da sociedade e o respeito aos direitos e liberdades de modo democrático não depende apenas da constituição e das instituições de controle social. A cultura da sociedade e principalmente a mentalidade do indivíduo precisam estar alinhadas com a lógica do exercício democrático do convívio social. A sociedade democrática não almeja ter um histórico impecável de punições justas contra criminosos e de um funcionamento exemplar do sistema carcerário. Estas duas características são mera consequência de uma gestão honesta do sistema de justiça. A sociedade democrática almeja a virtual não-existência do crime e esvaziamento populacional do sistema carcerário como consequência de uma igualdade universal. Isto é logicamente impraticável, um dos motivos o ser humano não sendo perfeitamente racional, mas o cenário é plausível como meta. O crime ocorre não somente como fruto da desigualdade, ele também ocorre de forma espontânea quando o indivíduo nutre valores diferentes dos que a sociedade impõe e age sobre eles. No contexto da violência contra animais, o indivíduo internaliza uma violência naturalizada, que de acordo com as suposições previamente discutidas neste texto, é abstrata o suficiente para ser aplicada contra qualquer indivíduo independentemente da espécie. Duas culturas diferentes são ensinadas ao indivíduo: o respeito mútuo para com as outras pessoas, amparado na constituição e na cartilha dos direitos humanos, e a violência natural contra outros indivíduos com caráter puramente consumista. O indivíduo, embora reprimido pela sociedade, treinado para não agir sobre seus impulsos emocionais, continua sendo ensinado a ser violento, mesmo que de forma indireta.
Conclusão e discussão sobre uma ética vegetariana
Evitou-se aqui argumentar sobre os direitos intrínsecos dos outros animais enquanto indivíduos sencientes e dotados de interesses próprios com importâncias equivalentes. Por um lado, apenas pelas discussões sobre a negação niilista da valorização absoluta das qualidades humanas e sobre a proximidade biológica das espécies animais, espero que o leitor possa claramente deduzir que este posicionamento é tomado como consequência direta. Por outro, a mera existência de direitos intrínsecos não me parece suficiente para garantir seu respeito. Procurei fazer um estudo das questões sociais que demonstrasse que é para o benefício do ser humano fazer respeitados os reconhecidos direitos intrínsecos das outras espécies. Uma conclusão da exposição acima é de que a violência é virtualmente universal. Não é suficiente arrefecer a violência de maneira reducionista, particularizando casos e privilegiando grupos, apoiando-se em meros entraves institucionais. O direito de autonomia é também a liberdade de consumo, e o consumo é cultivado numa cultura de violência que é velada, mas não menos internalizada pelo indivíduo. A complexidade de muitos problemas sociais é ininteligível tanto para os cidadãos quanto para seus gestores, e a violência internalizada desses cidadãos e os precedentes de opressão naturalizados pela sociedade podem facilmente ser incorporados na malha social de formas impossíveis de prever e impraticáveis de se detectar. Assim, tanto por uma filosofia puramente ética, quanto por uma filosofia social, somos levados a considerar também os direitos e a igualdade como universais.
Então, o vegetarianismo para mim é um movimento social que busca popularizar este ponto de vista e aplicá-lo na sociedade. O principal problema que ele visa combater é a violência internalizada, que é a força motriz de toda a opressão. O utilitarismo é altamente influente neste movimento pois ele permite que se trace um ideal como objetivo e facilita na prática o estabelecimento de metas. Não é defendido que se atinja a utopia, mas é permitido tomar decisões que respeitem os limites da praticidade e de uma forma mensurável, com transparência. Sendo o consumo o principal fator de disseminação da cultura de violência na sociedade, o carro-chefe do movimento é a abolição do consumo de carne. Outras pautas tem prioridade secundária, porém isso ocorre devido ao ponto de vista prático.
A abolição do consumo de carne implica na proteção do direito à vida dos animais. Nada mais. A partir daí o indivíduo pode decidir se a violação do direito à vida de um animal não-humano é tão grave quanto a violação do direito à vida de um humano, e fazer outras comparações também. Particularmente, acredito na igualdade do direito à vida sim. Em termos simples, matar um animal não-humano sem premissa de legítima defesa é um assassinato. A reação natural do leitor que não seja bastante familiarizado com a ideologia vegetariana é o choque. Sim, existem sérias implicações nesta crença, que levam a questionamentos morais profundos que parecem incompatíveis com o funcionamento da sociedade. No entanto, eu não sinto que uma discussão (possivelmente longa) sobre essas implicações pertença ao escopo deste texto, por isso postergarei essa discussão para outro texto. Peço que o leitor seja paciente e confie que eu não assumo esse posicionamento descuidadamente, nem de forma pretensiosa. Mas uma dessas implicações cabe mencionar aqui. A minha ética vegetariana considera o abate animal como assassinato, e isto implica em dois tipos de naturalização do assassinato: uma é a enorme naturalização já existente por causa da existência de indústrias voltadas para o abate; outra advém do fato que o abate é inevitável nas relações ecológicas, mesmo para espécies pacifistas. O ser humano é por vezes alvo de ataques de animais e também pode ser indiretamente prejudicado de maneira grave devido à atividade ecológica de certas espécies de animais. Um grande exemplo disso são os mosquitos transmissores de doenças. A guerra biológica do ser humano contra certas espécies não é injustificada, no final das contas. Mas se quisermos manter a coerência com as discussões prévias no texto, precisamos reconhecer que as guerras humanas na mesma medida não são necessariamente injustificadas. Se podemos justificar um abate, também podemos achar uma brecha para justificar um homicídio. No entanto, tal abate e tal homicídio não seriam frutos de uma cultura de violência naturalizada, pois a premissa que embasava o contexto de tais atrocidades era de que elas eram inevitáveis. É especialmente nesse ponto que o utilitarismo é tão importante, porque ele permite um gradiente entre os polos: a utopia onde a morte por assassinato ou negligência não ocorre; e a distopia onde a humanidade nasceu e da qual tenta se distanciar. Talvez até não seja, na realidade, muito difícil que as pessoas reconheçam que eventualmente certos homicídios são inevitáveis (um dos casos mais evidentes sendo uma situação crítica de reféns, ou um confronto entre criminosos armados e a polícia), mas pode ser muito difícil chegar nesse reconhecimento partindo da premissa de que o abate animal implica nesse fato.
A percepção do abate como análogo ao assassinato, violação básica do direito universal à vida senciente, leva a posturas comportamentais rígidas com relação ao consumo. Por mais que o abate não seja injustificável em todos os contextos, como discorrido no parágrafo anterior, do ponto de vista utilitarista ele deve ser evitado a todo custo, assim como o assassinato é percebido na sociedade. O vegetariano não participa de nenhuma atividade que envolve abate ou outro tipo de sofrimento animal gratuito, e não consome nenhum produto cuja produção envolva o abate de animais. Fora do contexto da civilização e inserido numa situação de sobrevivência, por exemplo, “o indivíduo perdido numa ilha deserta”, a ética vegetariana perde sentido, pois ela foi fundamentada fora desse contexto. Dentro da civilização, o vegetariano abole a participação no abate. Este princípio é tão inegociável quanto o assassinato. Pode ser que essa postura soe extrema, mas convém lembrar-se das eras e das sociedades em que o assassinato era permitido pela lei. Nessas eras, apesar de acontecerem assassinatos amparados pela constituição, eles não eram geralmente ocorrências indiferentes para a população, eram sim vistos como problema e provavelmente fonte de grande desconforto. Um pacifista vivendo nessas eras não entrava em desespero por estar cercado por uma cultura brutal, e também podia ser visto como extremista por não exercer seu ocasional direito de tirar a vida de outra pessoa (ou de pedir que tal vida seja tirada).
Além de evitar a participação no abate, o vegetariano defende a igualdade, ou ainda a equidade, em todas as esferas, pela própria natureza da filosofia que o fundamenta. O vegetariano deve buscar a igualdade de gênero, o respeito à orientação sexual, o respeito às diferenças de etnia e a justiça entre classes socioeconômicas. O vegetariano deve defender alguma forma de democracia e as liberdades individuais, inclusive a liberdade de expressão.
Por fim, o vegetarianismo, para mim, não tem sentido como mero estilo de vida próprio. Ele se fundamenta numa participação coletiva capaz de levar a uma transformação social. A própria origem desse vegetarianismo é social, mesmo que esse “social” envolva muitos indivíduos que não são humanos.
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