sábado, 20 de fevereiro de 2021

Racismo de negros contra brancos não é reverso nem inexistente: é puro.

Tempo de leitura estimado: 9 minutos, 45 segundos. Contém 1953 palavras 

Quando se fala de racismo na mídia (e nas redes sociais) quase sempre se está utilizando o conceito de racismo estrutural ou institucional, onde políticas e práticas discriminatórias estão inseridas na fundação dos meios de funcionamento da sociedade. Este é um conceito um tanto avançado que não é ensinado no sistema básico de educação. O uso indiscriminado deste conceito tem causado uma certa confusão em muitas pessoas e dominado o discurso público de uma forma a não permitir que as pessoas leigas desenvolvam uma compreensão crítica sobre questões raciais. Pessoalmente, mais vezes ouvi falar que só existem formas de opressão (racismo, sexismo etc) que sejam estruturais do que ouvi falar que existem formas de opressão tanto estruturais como pontuais. Acredito que seja porque, apesar de muitos ativistas descreverem casos pontuais de opressão onde uma pessoa privilegiada pratica uma ação discriminatória/violenta contra uma pessoa marginalizada, a ideia de caso pontual não respeita necessariamente a unidirecionalidade da opressão: certas vezes, uma pessoa pertencente a um grupo oprimido comete um ato discriminatório/violento contra uma pessoa privilegiada. É comum, nesse último caso, que esse ato não seja chamado de "opressão", pois não contém o fator social normalmente associado com o conceito de opressão. A Wikipédia em português (em 20/02/2021) descreve opressão como "o efeito negativo experimentado por pessoas que são alvo do exercício cruel do poder numa sociedade ou grupo social". No entanto, outros contextos se valem do termo "opressão", como o literário, onde muitas vezes vale a definição do dicionário Oxford: "tratamento ou controle injusto e prolongado; pressão ou sofrimento mental". É comum no contexto literário dizer que uma situação está oprimindo uma personagem ou que uma personagem está oprimindo outra sem precisar se valer de uma estrutura social ou institucional para isso. Já no conceito de "opressão", que é uma raiz para o conceito de racismo, temos uso divergente. Com relação à grupos sociais, em um caso, a opressão é definida de modo unidirecional, já no outro ela é definida como multidirecional.

Sem nos aprofundarmos nisso, já podíamos anteriormente justificar um multidirecionalidade do racismo com relação a grupos sociais. Na convenção de que o racismo exige uma estrutura social ou institucional para ocorrer, podemos observar várias instâncias em que no espaço de poucos anos uma sociedade desenvolveu estruturas de opressão contra um determinado grupo social: a Alemanha nazista contra os judeus; a revolução islâmica no Irã (contra o povo e especialmente as mulheres); a tensão entre Hutus e Tutsis iniciadas pelo Reino da Ruanda (pré-colonial) no fim do séc. XIX;  a ocupação japonesa da Coreia; nenhum dos exemplos citados envolve opressão sistêmica entre brancos e negros. A possibilidade do rápido estabelecimento e proliferação de estruturas sociais enviesadas por preconceitos e de instituições que validam a discriminação é motivo suficiente para se admitir a possibilidade de que aflore uma opressão sistêmica contra qualquer grupo, qualquer raça, no futuro, ou até mesmo que tenha aflorado no passado. É preciso admitir, entretanto, que no ocidente é extremamente difícil que se forme uma estrutura invertida de opressão racial de negros contra brancos. O argumento de multidirecionalidade do racismo feito acima, especialmente aplicado ao contexto brasileiro, tem a intenção de mostrar que o conceito de racismo contra brancos não é impossível ou mal-definido, e também não se trata de uma questão de mal-entendido. Isto não contradiz que o racismo estrutural contra brancos no Brasil (e no ocidente) é impraticável.

O parágrafo anterior é uma grande ressalva. O que se pretende estabelecer aqui na verdade é: o conceito de opressão estrutural possui muitas limitações quando utilizado no discurso público. Reconhecer isto é fundamental para estabelecermos um debate "leigo" mais produtivo e interromper o processo de alienação que está ocorrendo entre os polos políticos da sociedade. O termo "racismo" herda os mesmos tipos de conceitos definidos para "opressão". Existe aquele racismo estrutural que é o único considerado academicamente, e existe aquele que normalmente aprendemos na escola e que é descrito nos dicionários, que pode ser definido unicamente em termos das faculdades mentais de um indivíduo (preconceito baseado em etnia). Na esfera pública a confusão entre os dois conceitos é constante e seria até cômica se não fosse ao mesmo tempo triste e aborrecedora. Normalmente algum conservador acusa uma pessoa negra de ter sido racista contra uma pessoa branca. O conservador está querendo dizer que a pessoa negra discriminou por causa de cor. Progressistas então reagem explicando que a pessoa negra não foi racista porque o racismo só ocorre quando existem políticas e práticas discriminatórias inseridas nos meios de funcionamento da sociedade, sem deixar claro que estão trabalhando com uma definição específica do conceito de racismo (a que consideram a única válida). O conservador não entende o contexto do progressista e contra-argumenta como se o progressista estivesse equivocado sobre o conceito de racismo ou sendo desonesto. Nem um nem outro parece enxergar que estão trabalhando com conceitos diferentes e inutilmente tentam invalidar os argumentos um do outro sem perceber que o debate é infrutífero quando as duas partes não convencionam a mesma definição para o mesmo conceito. 

Fica ainda a dúvida: na ausência de uma estrutura social ou institucional de opressão, como uma pessoa pode oprimir a outra? Mesmo de acordo com a definição mais branda de opressão, não é tão fácil. Na opressão estrutural, a opressão se dá através de comportamentos normalizados. Na ausência do fator estrutural, um indivíduo muitas vezes precisa realizar comportamentos extremos ou proibidos para oprimir o outro. No entanto, existem formas de opressão que não exigem violência física ou abuso verbal grave. Uma delas é a censura, o silenciamento: a principal queixa da população conservadora. Quando uma pessoa branca reclama que está sendo censurada em sua fala, ou silenciada, o movimento progressista interpreta e responde dessa forma: se trata da reação de uma pessoa perdendo seus privilégios e sendo forçada a ceder seu lugar de fala a uma minoria que acabou de conquistar seu direito. Sem sombra de dúvidas, este argumento foi verdadeiro em boa parte das vezes em que foi aplicado. Mas também em parte significativa das vezes que foi aplicado, ele foi falso. Silenciar uma pessoa depende principalmente de possuir argumentos que invalidem a sua posição, é uma questão retórica. É possível fazer isso mesmo contra o sentido de uma estrutura social de opressão. E nas vezes que o argumento progressista foi falso na defesa do silenciamento, o dano causado foi maior do que o movimento imagina. Já para os conservadores o dano é exacerbado. 

Nesse ponto o leitor pode estar segurando uma dúvida fervente: "você está querendo comparar o tipo de opressão sofrida pelo negro com a sofrida pelo branco?" Asseguro-lhe de que não. Com frequência recebo o argumento de que o racismo estrutural é o problema focal e que não vale a pena tratar outros tipos "hipotéticos" de racismo junto com o estrutural. A minha resposta é de que se trata de uma falha no entendimento: quando se trata de qualquer par de problemas, um não anula o outro. Um não se iguala necessariamente ao outro no discurso e nem demanda atenção igual. Devemos respeitar a proporcionalidade do nosso esforço e tempo a diferentes problemas que demandam diferentes recursos. Não há empecilhos, portanto, a permitir que problemas diferentes, mesmo que relacionados ou aparentemente opostos, ocupem nossos pensamentos. Nesse ponto é comum o contra-argumento: "mesmo se sua queixa fosse válida, o racismo contra brancos ainda é um problema insignificante, irrisório, uma distração." Vou dedicar o resto deste texto a mostrar o contrário. 

Existem certas situações um tanto comuns onde negros apresentam certos preconceitos baseados em raça. Um exemplo ocorre dentro de discussões sobre relações afetivas. Se um negro não consegue muitas relações duradouras ou percebe outro negro que se relaciona afetivamente predominantemente com pessoas brancas, ele pode acusar as pessoas que o rejeitaram e o negro que supostamente prioriza brancos de discriminação. Ele pode estar certo, pode estar errado. Sem examinação dos pensamentos íntimos das pessoas envolvidas, é difícil dizer. Às vezes existem evidências, e às vezes essas evidências são vagas. Presumir as intenções de uma pessoa baseado na raça é preconceito, e acusar alguém de racismo ou discriminação é grave. Outro exemplo é quando ocorre algum tipo de altercação motivada por um fator não racial entre um negro e um branco, e um negro argumenta que o branco está dando tratamento diferencial: ele seria mais tolerante na desavença ou a desavença não existiria caso estivesse tratando com outra pessoa branca. Mais uma vez um preconceito seguido de uma acusação grave. Esse tipo de preconceito cai sob a definição branda de racismo que não é levada a sério em círculos acadêmicos ou militantes. Entretanto, quando esse tipo de situação ocorre em discurso público, é desnecessário dizer que o dano (indevido) causado à imagem da figura pública branca é tremendo. Esse é um efeito grave que tem moldado o discurso público nos últimos anos com consequências terríveis. Por medo de rechaço e maus entendidos, figuras públicas estão escondendo suas opiniões ou, em uma parte bem pequena, radicalizando seu discurso quando este é muito conservador. Pessoas anônimas também estão fazendo as mesmas coisas, porém, devido ao anonimato, a proporção daqueles que se radicalizam ao invés de autocensurar é maior. 

Reconhecer essa definição branda de racismo onde se enquadra um mero preconceito baseado em raça (e portanto nem há ainda necessariamente uma opressão factual) é um passo importante para se combater dois tipos de problemas sérios que estamos enfrentando. Isto ajuda a aproximar os dois lados radicalizados da "guerra cultural", a diminuir a polarização. Apesar de se tratar de uma questão completamente linguística e retórica (não se está realmente discutindo se negros são racistas contra brancos, mas se devemos adotar uma definição de racismo adequada para essa situação), ela tem tomado um peso enorme no debate público e sido fonte de muita confusão e falhas de comunicação. É impossível para o lado mais conservador acusar alguns excessos do progressivismo negro sem classificá-los como racistas, ao mesmo tempo é impossível para os mais progressistas reconhecerem o racismo em excessos do movimento. A discórdia acerca dos conceitos básicos impede que ambos os lados entendam os excessos da mesma forma e portanto que desenvolvam uma solução conjunta para o problema social. Isso também vale para o caso contrário: onde o movimento conservador falha em ceder espaço para o negro, tentando justificar a demanda correta do negro como excesso, e o debate por vezes recai sobre "a velha acusação de racismo reverso". O movimento progressista falha em reconhecer a legitimidade da queixa dos conservadores e moderados de que os progressistas são, por vezes, discriminatórios com brancos (e homens) no debate público, e faz isso de forma pedante com uma explicação prolixa e acadêmica sobre dívida histórica. Isso ao mesmo tempo nega a possibilidade de debate ao tentar impor os termos da discussão e serve para fechar o progressivismo em si mesmo ao mesmo tempo que aliena os outros setores da população. 

Isso nos leva ao outro problema: fechado em si mesmo, o progressivismo perde a capacidade de dialogar com grupos externos que podem fornecer críticas impossíveis de serem enxergadas de dentro, ao passo que se radicaliza. Isto potencializa os excessos que podem ser cometidos, o que aliena ainda mais a população que não pertence ao movimento, até mesmo convertendo moderados, neutros e desinteressados em opositores. Reconhecer a importância de uma definição mais branda de racismo pode ser importante não só para facilitar o diálogo e aproximar uma sociedade cada vez mais dividida, mas também é uma forma de reexaminação da conduta progressista que força a rever outros erros e excessos que tem sido contraproducentes e levado a sociedade em uma direção diversa da meta de igualdade. Porque sim, um movimento equivocado pode conquistar objetivos contrários daqueles a que se propôs em seu nascimento.

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