segunda-feira, 31 de maio de 2021

Os homens se apaixonam pela "feminilidade" e não pelas mulheres?

 Este post é uma crítica à seguinte publicação no Instagram:




O que eu concordo:

Uma minoria de homens, criada estritamente e explicitamente no modelo patriarcal, tem dificuldade de se relacionar com mulheres que adiram plenamente ao modelo patriarcal e à cultura machista. Muitas vezes eles vêem mulheres estritamente como objetos ou classe inferior, o que tornaria a "forma" (aparência) delas mais importante que sua "função" (qualidades), visto que eles reservam às suas parceiras apenas as "funções" mais simplórias.

É razoável presumir que este tipo de homem é intolerante com escolhas relacionadas à estilo de vida progressistas.

É também razoável presumir que este tipo de homem teria uma tendência maior a abandonar sua parceira em face de câncer de mama. Entretanto, esta afirmação ainda precisa ser substanciada (citação do estudo?).

O fenômeno apelidado de "masculinidade tóxica" resulta em um problema de saúde pública sim.

O que eu discordo:

Ele fez uma relação direta (implicitamente conjecturando) entre o homem rejeitar a parceira que raspa a cabeça por estilo próprio e o homem que rejeita a mulher que retira os seios como tratamento do câncer da mama. Ele assume a conclusão antes de apurar os dados e avalia a literatura sob seu próprio viés de confirmação pra confirmar essa conclusão.

Existem centenas de fatores interligados que interferem nas relações, que ele ignora tanto no caso do amigo (pra favorecer sua própria conjectura), como nos estudos que ele menciona (sem oferecer citação devida).

Em primeiro lugar, qual é a importância dos papéis de gênero? Papéis de gênero devem ser abolidos? Não devem haver quaisquer marcas culturais que distinguam a qualidade de uma pessoa ser feminina ou masculina? O texto do @joaomarques.psi me sugere que ele concorda com as duas últimas proposições. No momento em que se determina a existência de papéis de gênero, e entre esses papéis se define um papel feminino, surge a feminilidade, ou os "ideais de feminilidade". Mas definir um "ideal de feminilidade" é extremamente difícil, o conceito é muito vago, ao contrário do que os extremistas tanto progressistas quando conservadores ficam dizendo. Cada um tem o seu. E tem aqueles que querem rejeitar o papel de gênero feminino. E tem lugar no mundo pra todo mundo. Não se pode é forçar que um indivíduo em particular abole o ideal de gênero que ele construiu para si, nem quaisquer papéis de gênero que ele fomenta. Faz parte da psicologia humana construir modelos (ideais) daquilo que nos agrada. Muitas vezes construímos modelos errôneos, imprecisos, ou contradizemos nossos próprios modelos ao percebemos que podemos ser mais flexíveis. Esse ciclo de erro e aprimoração faz parte.

Coisas como tatuagens, penteados, acessórios, podem realmente ter uma significância muito ínfima como reflexão da personalidade ou histórico de uma pessoa. Mas para o parceiro dela, essas pequenas coisas (esses "pequenos aspectos", como foi falado) fazem parte do modelo de bem-estar que ele criou para si. Todo mundo precisa ter preferências superficiais, porque esses pequenos aspectos superficiais fazem parte da sua experiência cotidiana e não representam diferenças irrisórias.

Agora, sobre o caso que ele relata do amigo dele que perdeu o tesão pela namorada após ela ter raspado a cabeça. João atribui isso precipitadamente e injustamente a uma hipótese insubstanciada. Quando uma pessoa muda no curso de um relacionamento, isso normalmente fere os ideais e expectativas do outro. Idealizar o parceiro é saudável e normal. Racionalizar isso, ser tolerante e aberto às mudanças também é saudável e necessário. Porém, tudo tem um limite. Pode ser impossível para o parceiro abandonar o ideal que ele tinha de você que pra você foi mais fácil de abandonar ao passar pela sua mudança. E raspar o cabelo, via de regra, é uma mudança enorme. Não é um "pequeno aspecto" da pessoa. Não é algo insignificante em comparação com os outros aspectos do relacionamento, ele assume que seja. O @joaomarques.psi parece dar papel dentro de um relacionamento somente às questões de companheirismo, experiências compartilhadas, votos e decisões. Ou então ele dá apenas um espaço muito pequeno para outros aspectos de um relacionamento.

Em última instância, somando isto à abolição de papéis de gênero, a lógica do texto do João me permite afirmar: se o seu parceiro se descobre trans e faz redesignação sexual, se você (como heterossexual) realmente o ama deve continuar no relacionamento independente de qualquer mudança. Espero que essa afirmação seja considerada um absurdo.

Então, era preciso considerar esse fator na história do amigo dele. É bem possível que esse mesmo amigo, assim como qualquer homem que prefira mulher de cabelos longos, seja capaz de se apaixonar por outra mulher de cabelo curto ou raspado (até porque ele não construiu um ideal sobre essa outra pessoa ainda). Isso é diferente de quando a pessoa com quem você já construiu algo muda alguma coisa já estabelecida.

A "imagem idealizada" da mulher que ele pinta não é a regra geral, como eu expliquei antes. Ela é apenas o modelo sustentado por uma minoria conservadora. Todos os seres humanos sempre vão cair em estereótipos e isso é saudável e inevitável. Entretanto, esses estereótipos variam historicamente e geograficamente. No futuro, qualquer característica  considerada feminina pode vir a cair em desuso, e novas características podem vir a ser culturalmente eleitas. O fato é que sempre vai existir um lugar pra pessoas que compartilham dos mesmos gostos e curtem os mesmos estilos.

Aí a gente chega na questão do câncer de mama. Uma diferença crucial entre os dois casos é que o corte de cabelo é uma mudança eletiva, reflexo do estilo de vida da pessoa. O tratamento do câncer é compulsório, a mulher, de certa forma, não tem escolha. A mudança eletiva pode ser considerada mais arbitrária pelo parceiro, colocando um tipo de atrito diferente no relacionamento, tornando os casos de difícil comparação.

Nesse ponto, ele tenta fazer uma ligação com um estudo sobre abandono de mulheres doentes (no trecho em que diz "mulheres doentes tem seis vezes mais chances de serem abandonadas"), e ainda falsamente conecta esse estudo com câncer de mama (por falta de atenção e/ou irresponsabilidade). O estudo em questão é esse: https://doi.org/10.1002/cncr.24577 Ele é relacionado com tumor cerebral, não com câncer de mama. Na discussão, os autores falam:

"Alguns estudos de fato sugere que homens são menos capazes de assumir um papel de cuidador e assumir os fardos do lar e manutenção familiar, comparados às mulheres."

Isso mostra que o abandono não estava sendo interpretado pelos autores como um questão de atração pela parceira, mas puramente uma questão interna ao homem de lidar com seu papel de gênero. Ainda é algo ruim, sim, mas não é algo que corrobora a hipótese dele de que o homem se apaixona pelo ideal feminino. Além disso, de acordo com o mesmo estudo, a taxa de divórcio entre os casais acometidos pela doença era idêntica à taxa na população em geral - sugerindo que o efeito alegado da doença sobre o abandono das esposas, apesar de explicativo, não é tão influente. Sem falar que todos esses estudos sobre relacionamentos e doenças graves sugerem inúmeros fatores que afetam o relacionamento: estresse, depressão, dificuldades financeiras, perda de libido etc. O joaomarques.psi ignora tudo isso pra focar apenas na conclusão que quer tirar: o homem não curte a mulher que retirou a mama mesmo que ela bote prótese depois. Sendo que até agora nem falamos de câncer de mama ainda.

O estudo de câncer de mama que ele menciona (mais uma vez sem citar) eu não encontrei. Mas encontrei um de 2001 intitulado "Partner Abandonment of Women with Breast Cancer: Myth or Reality?" (https://doi.org/10.1046/j.1523-5394.2000.84004.x). No abstract eles fazem um apanhado geral:

"Visão geral: O número pequeno de estudos conduzidos neste tópico desde 1988 não revelaram nenhum dado confirmando o modelo em que os leigos acreditam, que propõe que mulheres com câncer de mama são abandonadas por seus parceiros. A evidência parece respaldar o modelo acreditado clinicamente, de que a maioria das relações maritais permanecem estáveis após o câncer de mama, e o término é mais provável naqueles relacionamentos com dificuldades pré-existentes.

Então, os estudos não corroboram os argumentos dele, e parecem demonstrar que ele fez má interpretação dos dados pra respaldar a própria hipótese, que não era muito razoável em primeiro lugar.

Definitivamente existem problemas com os papéis de gênero masculino e feminino, especialmente, nesse caso, com o masculino, a ponto de fomentar o uso do termo "masculinidade tóxica". Mas esses problemas não são exatamente nem necessariamente aqueles que o João alega. Ele subestima a importância do "uso devido" dos papéis de gênero e por isso parece querer minar a forma como certas "superficialidades" desses papéis mediam nossos relacionamentos, sendo que isto não é um posicionamento respaldado.


quinta-feira, 27 de maio de 2021

Please don't teach Critical Race Theory in Brazilian Schools

The following is my response to a comment section on YouTube on the subject of Critical Race Theory (CRT).

I lived in Brazil my whole life, and lived in Cleveland, OH for 1 year in 2012. The two countries have vastly different histories and demographics (obviously). I remember through primary and secondary education that matters of race were considered essential through the study of geography and history. There's a lack of nationalism here (first difference), which also collaborates for teachers and students to be very auto-critical of Brazil. Slavery was more impactful and "numerically intense" here than in the rest of America due to the sheer magnitude of human trafficking (second difference), so it stands to reason that it's harder to avoid the subject since it's so essential to the country's development. In addition, blacks compose a much bigger demographic slice (third difference), with estimates ranging from 14% (self-declared) to as much as 51% (ethno-genetic estimate). So African descendants continue to play an enormous role in Brazilian demographics (perhaps the biggest). But this is where the difference between US and Brazil strike me the most: around 40% of Brazilians declared themselves to be "miscigenated" (fourth difference). That's mostly the reason why estimates for the proportion of blacks in the population vary so wildly. Many people that would be considered phenotypically black in the US put themselves in the "miscigenated" category here (and there's no "Latino" category in Brazil, obviously lol). For example, I'm miscigenated. Mostly people tell me I look more like Native American or Asian, but my father is phenotypically black and my mother is white. And that is rather the norm here. So already the racial roles in Brazil are already blurred somewhat compared to the US. This, I think, facilitates conversations about race since most people don't feel singled out. And it feels to me like in Brazil there are way fewer taboos about race, since everyone's family is so racially mixed.  

How surprised was I when I arrived at an US university. There seemed to me to be a clear segregation between blacks and whites (and Asians, no Latinos in Ohio). And I saw many blacks in lower job positions and few blacks in high job positions. It was striking to me. I don't mean to say that we have many blacks in high job positions in Brazil, we don't, and we are a poor country. But when it comes to being poor, although it's no taboo that proportionally black people are economically disadvantaged (really, it's open, undisputed knowledge here), mostly our perception is that every race and ethnicity are together in poverty. Slums, which we taught in school are leftovers from black occupation of marginalized areas, are filled to the brim with white people. No such thing in the US, though. What put the segregation most starkly for me was that (in OH) I was able to understand white people's English perfectly, but I could barely understand anything black people said. Another racially charged phenomenon I witness in the US was the pronounced awkwardness and taboo around subjects of race. People really felt and spoke differently in racially mixed environments, not because of racism, it was just awkward. (All of this translated to movies and TV, but it's really hard to pick up on those nuances when they're not the focus of the show you're watching, so I had to go there to notice it). Coupled all of the above with the figure of 13% of US population being black (I don't know about its accuracy), and I have strong personal reasons to believe that primary and secondary education in the US might be really, really lacking in terms of racial context. Perhaps in Brazil CRT is not really needed because we have our own body of theories on social, geographical and economical development within racial contexts. It's no coincidence that CRT (which is US oriented) was born in the US. It's probably fair to say it was out of necessity and long overdue compared to the rest of the world.  

So, I said all that because, as a teacher, I thought you'd be appreciative of this perspective. But after this entire thesis, I still feel critical about CRT, because there are elements of it which I don't endorse. For example, when I read things like "experiences of my students" and "come to class seeking out someone to listen to what they are witnessing", I refer myself to the Wikipedia article on CRT (as of May 2021), where they list storytelling as a common theme, explaining "use of narrative to illuminate and explore experiences of racial oppression." I don't value this so much. I see the logic and potential, but I'm not convinced this is inherently a good process. They immediately follow it up with this: "Bryan Brayboy has emphasized the epistemic importance of storytelling in Indigenous-American communities as superseding that of theory." Yeah, this is exactly what I was afraid of, stuff superseding theory in importance, even if they prefix that importance with "epistemic". Another common theme they cite is what they call here "Standpoint epistemology", which they describe as "The view that a member of a minority has an authority and ability to speak about racism that members of other racial groups do not have." I completely condemn this view and, as a science student, find it to be detrimental to critical and scientific thinking. Another thing I'm not a fan of at all is intersectionality, I do not agree with the use of this analytical framework. And I know you'd probably have a lot to say about intersectionality and all of the above, but that's a discussion that can only happen over beer bottles and between vaxxed people. I really am no expert, which was made evident after I admitted to have learned the subject from Wikipedia. But I also can't take any expert fully on their word on this, mostly because I know social sciences are not like hard sciences where "truth" is much easier to establish, so I lean on my hard science background to wade through these subjects with caution.  

These themes that I cited, storytelling, "standpoint epistemology", and intersectionality, when I was a kid in school they weren't standalone themes in the teaching of history and geography. But even I think they have good elements within them, that can be used right (with the right emphasis, which I believe is lower than what CRT seems to purport), and these elements were somewhat mixed within the scholar curriculum I had in Brazil. But of course, the last 10 years, as these themes rose to prominence in public, media and specially in internet discourse, they were promptly imported into Brazilian culture and they have been well applied throughout social debate here, to an extent which I find excessive and detrimental. When it comes to my country specifically, I feel secure in saying that I wish these themes don't penetrate primary and secondary education textbooks the way they have been proposed by CRT and which dominates "mature" public discourse nowadays. But when it comes to the US, having thought about all of this together for the first time, maybe it's better than not having anything. Because unfortunately I haven't heard about any alternative to CRT from the English speaking world. 

Giving some context about myself, I'm a (thoroughly) mixed race straight male in what is considered a "leftist" state. All my life until very recently I considered myself a progressive, before the world was this polarized. Now I feel compelled to label myself anti-conservative so as not to be pushed to one of the two sides of the conversation. Also, I appreciate your sharing your perspective as a teacher and elucidating a little of what CRT is about.

sábado, 20 de fevereiro de 2021

Racismo de negros contra brancos não é reverso nem inexistente: é puro.

Tempo de leitura estimado: 9 minutos, 45 segundos. Contém 1953 palavras 

Quando se fala de racismo na mídia (e nas redes sociais) quase sempre se está utilizando o conceito de racismo estrutural ou institucional, onde políticas e práticas discriminatórias estão inseridas na fundação dos meios de funcionamento da sociedade. Este é um conceito um tanto avançado que não é ensinado no sistema básico de educação. O uso indiscriminado deste conceito tem causado uma certa confusão em muitas pessoas e dominado o discurso público de uma forma a não permitir que as pessoas leigas desenvolvam uma compreensão crítica sobre questões raciais. Pessoalmente, mais vezes ouvi falar que só existem formas de opressão (racismo, sexismo etc) que sejam estruturais do que ouvi falar que existem formas de opressão tanto estruturais como pontuais. Acredito que seja porque, apesar de muitos ativistas descreverem casos pontuais de opressão onde uma pessoa privilegiada pratica uma ação discriminatória/violenta contra uma pessoa marginalizada, a ideia de caso pontual não respeita necessariamente a unidirecionalidade da opressão: certas vezes, uma pessoa pertencente a um grupo oprimido comete um ato discriminatório/violento contra uma pessoa privilegiada. É comum, nesse último caso, que esse ato não seja chamado de "opressão", pois não contém o fator social normalmente associado com o conceito de opressão. A Wikipédia em português (em 20/02/2021) descreve opressão como "o efeito negativo experimentado por pessoas que são alvo do exercício cruel do poder numa sociedade ou grupo social". No entanto, outros contextos se valem do termo "opressão", como o literário, onde muitas vezes vale a definição do dicionário Oxford: "tratamento ou controle injusto e prolongado; pressão ou sofrimento mental". É comum no contexto literário dizer que uma situação está oprimindo uma personagem ou que uma personagem está oprimindo outra sem precisar se valer de uma estrutura social ou institucional para isso. Já no conceito de "opressão", que é uma raiz para o conceito de racismo, temos uso divergente. Com relação à grupos sociais, em um caso, a opressão é definida de modo unidirecional, já no outro ela é definida como multidirecional.

Sem nos aprofundarmos nisso, já podíamos anteriormente justificar um multidirecionalidade do racismo com relação a grupos sociais. Na convenção de que o racismo exige uma estrutura social ou institucional para ocorrer, podemos observar várias instâncias em que no espaço de poucos anos uma sociedade desenvolveu estruturas de opressão contra um determinado grupo social: a Alemanha nazista contra os judeus; a revolução islâmica no Irã (contra o povo e especialmente as mulheres); a tensão entre Hutus e Tutsis iniciadas pelo Reino da Ruanda (pré-colonial) no fim do séc. XIX;  a ocupação japonesa da Coreia; nenhum dos exemplos citados envolve opressão sistêmica entre brancos e negros. A possibilidade do rápido estabelecimento e proliferação de estruturas sociais enviesadas por preconceitos e de instituições que validam a discriminação é motivo suficiente para se admitir a possibilidade de que aflore uma opressão sistêmica contra qualquer grupo, qualquer raça, no futuro, ou até mesmo que tenha aflorado no passado. É preciso admitir, entretanto, que no ocidente é extremamente difícil que se forme uma estrutura invertida de opressão racial de negros contra brancos. O argumento de multidirecionalidade do racismo feito acima, especialmente aplicado ao contexto brasileiro, tem a intenção de mostrar que o conceito de racismo contra brancos não é impossível ou mal-definido, e também não se trata de uma questão de mal-entendido. Isto não contradiz que o racismo estrutural contra brancos no Brasil (e no ocidente) é impraticável.

O parágrafo anterior é uma grande ressalva. O que se pretende estabelecer aqui na verdade é: o conceito de opressão estrutural possui muitas limitações quando utilizado no discurso público. Reconhecer isto é fundamental para estabelecermos um debate "leigo" mais produtivo e interromper o processo de alienação que está ocorrendo entre os polos políticos da sociedade. O termo "racismo" herda os mesmos tipos de conceitos definidos para "opressão". Existe aquele racismo estrutural que é o único considerado academicamente, e existe aquele que normalmente aprendemos na escola e que é descrito nos dicionários, que pode ser definido unicamente em termos das faculdades mentais de um indivíduo (preconceito baseado em etnia). Na esfera pública a confusão entre os dois conceitos é constante e seria até cômica se não fosse ao mesmo tempo triste e aborrecedora. Normalmente algum conservador acusa uma pessoa negra de ter sido racista contra uma pessoa branca. O conservador está querendo dizer que a pessoa negra discriminou por causa de cor. Progressistas então reagem explicando que a pessoa negra não foi racista porque o racismo só ocorre quando existem políticas e práticas discriminatórias inseridas nos meios de funcionamento da sociedade, sem deixar claro que estão trabalhando com uma definição específica do conceito de racismo (a que consideram a única válida). O conservador não entende o contexto do progressista e contra-argumenta como se o progressista estivesse equivocado sobre o conceito de racismo ou sendo desonesto. Nem um nem outro parece enxergar que estão trabalhando com conceitos diferentes e inutilmente tentam invalidar os argumentos um do outro sem perceber que o debate é infrutífero quando as duas partes não convencionam a mesma definição para o mesmo conceito. 

Fica ainda a dúvida: na ausência de uma estrutura social ou institucional de opressão, como uma pessoa pode oprimir a outra? Mesmo de acordo com a definição mais branda de opressão, não é tão fácil. Na opressão estrutural, a opressão se dá através de comportamentos normalizados. Na ausência do fator estrutural, um indivíduo muitas vezes precisa realizar comportamentos extremos ou proibidos para oprimir o outro. No entanto, existem formas de opressão que não exigem violência física ou abuso verbal grave. Uma delas é a censura, o silenciamento: a principal queixa da população conservadora. Quando uma pessoa branca reclama que está sendo censurada em sua fala, ou silenciada, o movimento progressista interpreta e responde dessa forma: se trata da reação de uma pessoa perdendo seus privilégios e sendo forçada a ceder seu lugar de fala a uma minoria que acabou de conquistar seu direito. Sem sombra de dúvidas, este argumento foi verdadeiro em boa parte das vezes em que foi aplicado. Mas também em parte significativa das vezes que foi aplicado, ele foi falso. Silenciar uma pessoa depende principalmente de possuir argumentos que invalidem a sua posição, é uma questão retórica. É possível fazer isso mesmo contra o sentido de uma estrutura social de opressão. E nas vezes que o argumento progressista foi falso na defesa do silenciamento, o dano causado foi maior do que o movimento imagina. Já para os conservadores o dano é exacerbado. 

Nesse ponto o leitor pode estar segurando uma dúvida fervente: "você está querendo comparar o tipo de opressão sofrida pelo negro com a sofrida pelo branco?" Asseguro-lhe de que não. Com frequência recebo o argumento de que o racismo estrutural é o problema focal e que não vale a pena tratar outros tipos "hipotéticos" de racismo junto com o estrutural. A minha resposta é de que se trata de uma falha no entendimento: quando se trata de qualquer par de problemas, um não anula o outro. Um não se iguala necessariamente ao outro no discurso e nem demanda atenção igual. Devemos respeitar a proporcionalidade do nosso esforço e tempo a diferentes problemas que demandam diferentes recursos. Não há empecilhos, portanto, a permitir que problemas diferentes, mesmo que relacionados ou aparentemente opostos, ocupem nossos pensamentos. Nesse ponto é comum o contra-argumento: "mesmo se sua queixa fosse válida, o racismo contra brancos ainda é um problema insignificante, irrisório, uma distração." Vou dedicar o resto deste texto a mostrar o contrário. 

Existem certas situações um tanto comuns onde negros apresentam certos preconceitos baseados em raça. Um exemplo ocorre dentro de discussões sobre relações afetivas. Se um negro não consegue muitas relações duradouras ou percebe outro negro que se relaciona afetivamente predominantemente com pessoas brancas, ele pode acusar as pessoas que o rejeitaram e o negro que supostamente prioriza brancos de discriminação. Ele pode estar certo, pode estar errado. Sem examinação dos pensamentos íntimos das pessoas envolvidas, é difícil dizer. Às vezes existem evidências, e às vezes essas evidências são vagas. Presumir as intenções de uma pessoa baseado na raça é preconceito, e acusar alguém de racismo ou discriminação é grave. Outro exemplo é quando ocorre algum tipo de altercação motivada por um fator não racial entre um negro e um branco, e um negro argumenta que o branco está dando tratamento diferencial: ele seria mais tolerante na desavença ou a desavença não existiria caso estivesse tratando com outra pessoa branca. Mais uma vez um preconceito seguido de uma acusação grave. Esse tipo de preconceito cai sob a definição branda de racismo que não é levada a sério em círculos acadêmicos ou militantes. Entretanto, quando esse tipo de situação ocorre em discurso público, é desnecessário dizer que o dano (indevido) causado à imagem da figura pública branca é tremendo. Esse é um efeito grave que tem moldado o discurso público nos últimos anos com consequências terríveis. Por medo de rechaço e maus entendidos, figuras públicas estão escondendo suas opiniões ou, em uma parte bem pequena, radicalizando seu discurso quando este é muito conservador. Pessoas anônimas também estão fazendo as mesmas coisas, porém, devido ao anonimato, a proporção daqueles que se radicalizam ao invés de autocensurar é maior. 

Reconhecer essa definição branda de racismo onde se enquadra um mero preconceito baseado em raça (e portanto nem há ainda necessariamente uma opressão factual) é um passo importante para se combater dois tipos de problemas sérios que estamos enfrentando. Isto ajuda a aproximar os dois lados radicalizados da "guerra cultural", a diminuir a polarização. Apesar de se tratar de uma questão completamente linguística e retórica (não se está realmente discutindo se negros são racistas contra brancos, mas se devemos adotar uma definição de racismo adequada para essa situação), ela tem tomado um peso enorme no debate público e sido fonte de muita confusão e falhas de comunicação. É impossível para o lado mais conservador acusar alguns excessos do progressivismo negro sem classificá-los como racistas, ao mesmo tempo é impossível para os mais progressistas reconhecerem o racismo em excessos do movimento. A discórdia acerca dos conceitos básicos impede que ambos os lados entendam os excessos da mesma forma e portanto que desenvolvam uma solução conjunta para o problema social. Isso também vale para o caso contrário: onde o movimento conservador falha em ceder espaço para o negro, tentando justificar a demanda correta do negro como excesso, e o debate por vezes recai sobre "a velha acusação de racismo reverso". O movimento progressista falha em reconhecer a legitimidade da queixa dos conservadores e moderados de que os progressistas são, por vezes, discriminatórios com brancos (e homens) no debate público, e faz isso de forma pedante com uma explicação prolixa e acadêmica sobre dívida histórica. Isso ao mesmo tempo nega a possibilidade de debate ao tentar impor os termos da discussão e serve para fechar o progressivismo em si mesmo ao mesmo tempo que aliena os outros setores da população. 

Isso nos leva ao outro problema: fechado em si mesmo, o progressivismo perde a capacidade de dialogar com grupos externos que podem fornecer críticas impossíveis de serem enxergadas de dentro, ao passo que se radicaliza. Isto potencializa os excessos que podem ser cometidos, o que aliena ainda mais a população que não pertence ao movimento, até mesmo convertendo moderados, neutros e desinteressados em opositores. Reconhecer a importância de uma definição mais branda de racismo pode ser importante não só para facilitar o diálogo e aproximar uma sociedade cada vez mais dividida, mas também é uma forma de reexaminação da conduta progressista que força a rever outros erros e excessos que tem sido contraproducentes e levado a sociedade em uma direção diversa da meta de igualdade. Porque sim, um movimento equivocado pode conquistar objetivos contrários daqueles a que se propôs em seu nascimento.